Quintal não mais. Por Edward Magro

Atualizado em 19 de agosto de 2025 às 10:20
O presidente Lula – Foto: Reprodução

O último Datafolha trouxe um retrato curioso do imaginário nacional: 35% dos brasileiros acreditam que o tarifaço é culpa de Lula, enquanto 39% atribuem a responsabilidade à família Bolsonaro. O dado em si revela mais do que uma divisão de opiniões: revela a desinformação cuidadosamente cultivada. Pois a verdade é uma só: o tarifaço é culpa direta de Donald Trump. C’est fini!

Quanto aos 39% que responsabilizam a família Bolsonaro, o furdunço desinformacional produzido pelo fascismo tenta transformá-la, de família antinacionalista que odeia o povo brasileiro, em uma tropa de “guerreiros” de uma luta imaginária pela liberdade de um criminoso golpista. O bolsonarismo atua como linha auxiliar de interesses estrangeiros, esforçando-se para colar-se a Trump como sombra bajuladora. Eduardo Bananinha, em particular, é a tradução viva do que o excepcional jornalista Moisés Mendes definiu com precisão: um “mané”. Sem relevância alguma, um estorvo por onde passa, ontem exibiu orgulhoso, numa live, um jornal autografado por Trump, como se fosse adolescente extasiado diante de um álbum de figurinhas finalmente completado, ignorando que o mundo político não funciona por coleções e autógrafos. Se Bananinha tivesse alguma importância real, mostraria uma foto recente ao lado do ídolo; a última que possui já está amarelada e guarda apenas a lembrança de uma madrugada fria em Mar-a-Lago, comprada por cem mil dólares e regada a seis horas numa fila humilhante — experiência típica de devoto que paga caro pelo privilégio de tocar a barra da túnica do messias. É nisso que se resume: de embaixapeiro em potencial, acabou reduzido a uma caricatura viva, cheerleader de um espetáculo que nunca lhe pertenceu. Uma evolução involucional.

Mas vamos ao que realmente importa. Seria ingênuo supor que o tarifaço se trata apenas de um capricho trumpista. A taxação não nasce em Washington como exceção, mas como regra. A motivação é a mesma que atravessou democratas e republicanos nas últimas décadas: Lula. Não o Brasil em abstração, não o alumínio, não o aço, nem o suco de laranja, soja, milho ou aviões. Lula. Para os Estados Unidos, Lula é um problema a ser neutralizado desde sempre. Foi assim sob Obama, quando democratas patrocinaram a farsa judicial que o prendeu; está sendo assim sob Trump, com tarifas direcionadas para fragilizá-lo; será assim sob qualquer ocupante da Casa Branca que não tolere um Brasil altivo.

O tarifaço não é contra exportadores brasileiros, mas contra Lula. O mesmo Lula cuja prisão foi articulada sob democratas, Obama, cuja derrota política é obsessão tanto de republicanos quanto de progressistas de vitrine. Porque Lula encarna algo que os Estados Unidos não toleram: a possibilidade de que a América Latina não seja jardim, quintal ou protetorado, mas sujeito político.

É verdade que a importância de Lula traz riscos. Para a encarquilhada mentalidade colonista de Washington, a América Latina é seu último reduto colonial. A África, em boa medida, está sob influência chinesa; a Ásia estadunidense respira por aparelhos, sustentada pelo alinhamento isolado do Japão e da Coreia do Sul. A Europa ainda deseja manter-se atlantista, mas com Trump no poder o atlantismo se torna indigestão contratada. Resta, portanto, a América Latina — e, dentro dela, o Brasil. O risco reside em que a engrenagem interna do golpe de 2016, articulada em conluio com os EUA, permaneceu intocada. Os rentistas saíram ilesos; os donos de partidos seguem atados, como carrapatos, sugando a energia do parlamento — Temer, Kassab, Ciro Nogueira e Valdemar da Costa Neto, artífices, articuladores e implementadores do golpe contra Dilma, continuam mandando no Congresso. Os militares seguem alinhados — Villas Bôas, felizmente protomorto, mas ainda vivo, ronda como espectro —, e magistrados e procuradores permanecem o expoente máximo do fascismo nacional. O STF e a PGR atuais são apenas oásis num deserto vasto e hostil da justiça brasileira. Nada foi desmontado.

Porém, há outro lado. Redentor, diga-se. É justamente essa obsessão contra Lula que revela sua centralidade. Se ele é perseguido com tamanha insistência, é porque se tornou o polo em torno do qual gravitam as expectativas do Sul Global. Ele é ouvido em Brasília, Pretória, Nova Délhi, Paris, Moscou, Pequim. Transforma reuniões multilaterais em momentos de articulação real, expondo problemas globais que poucos têm coragem de tocar. Sua fala é anticolonialista e demonstra um afastamento concreto da política intervencionista estadunidense. Isso incomoda profundamente o poder imperial. A cada gesto, reafirma que um Brasil soberano pode reposicionar toda a América Latina e, com isso, abrir espaço para um mundo multipolar.

Assim, o tarifaço deve ser lido pelo que é: não uma medida econômica, mas um recado político. Não é contra produtos brasileiros, é contra um presidente que desafia o monopólio da influência estadunidense. É contra Lula vivo, atuante e, sobretudo, ouvido.

Resta ao Brasil, e a nós do campo progressista, compreender o que se desenha. Porque, se Eduardo Bananinha não passa de cheerleader com jornal rabiscado, se Trump é apenas o porta-voz mais histriônico de uma máquina imperial, Lula é a prova viva de que a América Latina não precisa aceitar o papel de quintal.

Donald Trump, presidente dos EUA – Foto: Reprodução

E enquanto Lula existir, o Sul Global não pedirá licença: caminhará, respirará e reclamará seu espaço, com a firmeza discreta de quem não tem nada a provar a ninguém. Avançará com passos próprios, deixando para trás sombras de cheerleaders, villas-não-tão-boas e manés.

Cabe a nós assegurar que Lula continue existindo.