Relembrar é preciso. Por Eugênio Aragão

Atualizado em 29 de março de 2019 às 21:22
Comício das Diretas Já na Praça da Sé, em São Paulo

POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça 

Era 1984.

As ruas se enchiam de gente a se manifestar por eleições diretas para presidente da República. Na Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, mais de um milhão de pessoas se aglomeravam em frente do palco armado, com as presenças de Ulysses Guimarães, Lula, Tancredo Neves e Leonel Brizola, dentre muitos outros atores políticos.

Os atos contavam com apoio da OAB e da ABI, assim como uma variedade de outras entidades civis, unânimes em exigir o fim da ditadura militar.

O regime dava suas últimas suspiradas, admitindo, já, que o próximo presidente não vestisse farda. No enfraquecido partido da situação, o PDS, engalfinhavam-de dois grupos: um, oficialista, queria Mário Andreazza como candidato e contava com o apoio da cúpula do governo; outro queria Paulo Maluf, um rebelde que, desafiando os militares, conseguia cada vez mais adesões nas hostes situacionistas.

É claro que o PDS se debatia, fechando questão na escolha do presidente por via indireta, através do colégio eleitoral. A oposição militava pelas diretas já, alguns com mais sinceridade do que outros na demanda.

O Congresso Nacional estava por votar emenda constitucional de autoria do deputado mato-grossense Dante de Oliveira, que reinstituía eleição direta para presidente da República.

Na reação ao grito libertário das massas, prospectivas viúvas da ditadura que respirava por aparelhos confeccionavam bombas, para enviá-las por correio a entidades e personalidades. Foi assim que Dona Lyda Monteiro da Silva, secretária do presidente da OAB-RJ, foi covardemente assassinada ao abrir o envelope destinado ao advogado Haddock Lobo, que presidia a seccional. Os terroristas do submundo do regime também incendiavam bancas de jornais que vendessem produtos da imprensa alternativa.

Em Brasília, com medo do povo, o regime decretava medidas de emergência para a votação da emenda Dante de Oliveira. Nomeou-se o general Newton Cruz, chefe da agência central do SNI e a quem se atribui suposta participação no sequestro e morte do jornalista Alexandre von Baumgarten, de sua esposa e de um barqueiro, para coordenar a aplicação das medidas decretadas.

Newton Cruz era um boçal, bem no estilo do atual presidente Jair Bolsonaro. Os brasilienses resolveram enfrentar a repressão da emergência com buzinaços na Esplanada dos Ministérios e em outras vias públicas. O general se irritou e foi pessoalmente enfrentar os motoristas topetudos, com chicotinho de cavalgar em mão. Batia nos carros ao meio do trânsito, enquanto outros buzinavam em suas costas. Newton Cruz pulava ridículo entre os carros, com fúria, sendo motivo de chacota de todos.

A Emenda Dante de Oliveira não foi aprovada e, no colégio eleitoral, Tancredo Neves foi o candidato de consenso da oposição e contou, também, com o voto daqueles governistas que se recusavam a votar em Paulo Maluf, candidato do PDS que, na convenção partidária, derrotara Mário Andreazza.

Assim é que a oposição venceu, para  desgosto do último presidente-general, João Figueiredo. No pacto oposicionista, contra a vontade do regime, o senador José Sarney, que até poucas semanas antes presidia o PDS, formou chapa com o vencedor Tancredo Neves, sendo escolhido seu vice-presidente.

Foi este o melancólico fim da ditadura militar, derrotada por seus próprios quadros políticos, incapazes de enxergar o esgotamento do regime, com uma inflação que chegaria a 225,9% ao ano em fevereiro de 1985.

A maioria dos eleitores de hoje, muito jovens, não viveram esses fatos e boa parte deles, talvez por desconhecimento, bate palmas para os que agora, por oportunismo ou por ódio insano à democracia, querem homenagear a ditadura militar.

É importante lembrar-lhes que  o regime morreu porque os brasileiros ficaram fartos dele, passaram a ter repulsa por militares que sequestravam, torturavam e matavam, como fizeram, por último, com Manoel Fiel Filho e Vladimir Herzog.

A cidadania recusou a submissão e desafiou o autoritarismo. No movimento estudantil, lembrava-se da covardia do sumiço de Honestino Guimarães. Os advogados cerraram fileiras contra a invasão da sede da OAB no Distrito Federal a mando do alucinado Newton Cruz.

Mesmo com suas medidas de emergência, multidões ocuparam a laje do Congresso Nacional no dia da votação da Emenda Dante de Oliveira e no dia da sessão do colégio eleitoral. O regime estava completamente desmoralizado por conta de sua truculência e sua incompetência.

A democracia que então se buscava reconquistar viria a trilhar um caminho tortuoso para sua construção. A democracia é assim: sempre inacabada, sempre imperfeita, mas sempre alimentada pelo desejo insaciável por direitos e liberdade.

Nunca é completa, nunca é ideal, mas é, com todos os seus erros e acertos, a melhor via para o progresso, para a inclusão social e para o respeito ao direito de todos conviverem em paz e com dignidade.

Querer, hoje, voltar ao passado tenebroso que superamos com tanta bravura é ir na contramão da civilização, da história e, sobretudo, do respeito a nós mesmos e da autoestima do povo brasileiro.