Religião e covid-19: qual o papel da fé em meio a uma pandemia como esta?

Atualizado em 30 de agosto de 2020 às 23:17

Publicado originalmente na Rede Brasil Atual

Por Claudio Pereira Noronha

Pixabay

Qual o papel da religião em meio a uma pandemia com a dimensão da covid-19, situação em que a sociedade global foi colocada diante de uma ameaça de origem “natural” (e não de ordem sociopolítica) em que o ser humano se vê como principal meio (involuntário) de transmissão e disseminação do elemento (vírus) que coloca a própria existência em risco? De que forma a religião – um sistema de crenças e práticas – ordena ou reordena as “certezas abaladas”, que não estão somente em âmbito social, econômico ou político, mas também – e sobretudo –, na dimensão da própria existência humana? Tratei deste tema sobre a religião e a covid-19 na 13ª Carta de Conjuntura da USCS.

A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus coloca a inteligência humana diante do desafio de descobrir como enfrentá-la. Essa descoberta não se restringe ao “campo técnico científico” (responsável pela circunstância epidemiológica). Colocam-se também os desafios socioculturais, o que admite uma reflexão sobre como as religiões estão aprendendo a lidar com a “nova” situação.

Qual o papel da religião em meio a uma pandemia com a dimensão da covid-19, situação em que a sociedade global foi colocada diante de uma ameaça de origem “natural” (e não de ordem sociopolítica) em que o ser humano se vê como principal meio (involuntário) de transmissão e disseminação do elemento (vírus) que coloca a própria existência em risco? De que forma a religião – um sistema de crenças e práticas – ordena ou reordena as “certezas abaladas”, que não estão somente em âmbito social, econômico ou político, mas também – e sobretudo –, na dimensão da própria existência humana? Tratei deste tema sobre a religião e a covid-19 na 13ª Carta de Conjuntura da USCS.

A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus coloca a inteligência humana diante do desafio de descobrir como enfrentá-la. Essa descoberta não se restringe ao “campo técnico científico” (responsável pela circunstância epidemiológica). Colocam-se também os desafios socioculturais, o que admite uma reflexão sobre como as religiões estão aprendendo a lidar com a “nova” situação.

Embora a morte não esteja sob o controle de ninguém, até meses atrás tínhamos alguma capacidade de organizar nossa vida a ponto de possibilitar certo nível de “prevenção”.

Com particularidades, devido às desigualdades socioeconômicas do país, uma boa alimentação, exercícios físicos, e uma visita regular ao médico, tudo associado a comportamentos cuidadosos, como dirigir com prudência, poderiam indicar (não garantir) uma vida saudável e com algum grau de longevidade. Com isso, a expectativa de vida do brasileiro, como indicam estudos do IBGE, vem aumentado nas últimas décadas. Quem nascia em 1970, vivia em média 57,6 anos; quem nasceu em 2018, viverá em média 76,3 anos.

Entender o sagrado

As instituições religiosas se encontram desafiadas num momento como esse. Boa parte delas depende da presença de pessoas para as suas cerimônias. Como, então, a experiência com o “sagrado” da religião pode se realizar em um contexto em que se faz necessário o isolamento social como forma de mitigar a disseminação da covid-19? Como conciliar interditos (proibição de velórios, por exemplo) com “crenças” tão arraigadas, como é o caso do sepultamento, que fazem parte de uma “explicação religiosa” da vida e da morte, ou mesmo da vida após a morte?

Para além dessas questões, de ordem “espiritual”, que reflexões as religiões podem produzir acerca dos problemas sociais que a pandemia descortinou? Que tipo de sociedade pós-pandemia poderemos ou queremos ter? As religiões estão refletindo sobre isso?

Uma parte do “campo religioso” brasileiro não terá possibilidade de fazer tal reflexão. Esse segmento está travando uma disputa político-ideológica, com aparência de uma disputa “teológica”, que não lhe permite transpor a realidade presente, e suas “querelas”, e dessa forma ponderar sobre o porvir. Isso está ocorrendo no interior de uma disputa política (anterior à pandemia) que inseriu parte do “campo religioso cristão” (com maior presença de evangélicos, mas não só) na campanha do atual presidente da República.

Com a participação da “bancada evangélica”, a disputa se estendeu durante a pandemia numa controvérsia entre as orientações científicas de isolamento social (pela OMS) que contrariaram o desejo de Jair Bolsonaro de garantir a abertura de setores econômicos (e satisfazer empresários) que não foram considerados “essenciais”.

Separar o joio do trigo

Com relação aos evangélicos, não devemos generalizar. Nem todos questionaram a importância da Ciência como instituição capaz de enfrentar a pandemia. Podemos dizer que uma parcela de religiosos está em busca de compreender como o conjunto dos “bens simbólicos”, geridos por suas instituições ou tradições, pode trazer alento imediato aos fiéis, bem como também propor uma perspectiva (de sociedade) para um futuro breve.

Um “passeio” pelos canais televisivos, ou redes sociais, mostra que grupos religiosos ou espiritualistas têm propiciado “virtualmente” ambientes simbólico-rituais ou práticas meditativas como forma de manter as pessoas em conexão com elementos sagrados. Com objetivos “religiosos” ou “psicológicos” buscam diminuir as angústias e incertezas trazidas pelo momento e manter algum equilíbrio emocional. As mensagens buscam levar “consolo” nesse momento de aparente “caos”.

Em 15 de maio passado, organizada pelo Sindicato dos Bancários do ABC e Editora Coopacesso, foi realizada uma “roda de conversa” (que passou a ser chamada live) com integrantes de diferentes religiões. O tema do debate foi “Espiritualidade versus pandemia: um olhar religioso para a covid-19”. Três questões nortearam a reflexão: 1) a visão dos grupos religiosos sobre desafios e aprendizados que a pandemia trouxe; 2) como os religiososo estão orientando seus fiéis a viver a experiência do Sagrado numa condição de isolamento social; e 3) qual a visão do grupo religioso sobre a sociedade pós-pandemia.

Participaram do debate representantes das comunidades tradicionais de terreiro, do catolicismo, do Islã, dos evangélicos e do judaísmo. Seguem considerações com base nas falas dos participantes do debate.

Religião, covid-19 e o depois

A pandemia “obrigou” as pessoas a ficar em casa – alguns puderam outros não – o que trouxe o imperativo de um reaprendizado da convivência com familiares; colocou-nos o desafio da empatia e pensar no cuidado de outras famílias. A pandemia trouxe a necessidade de uma profunda reflexão sobre a vida em comunidade, o que passa por pensar na fé, na relação com as pessoas, mas também nas injustiças sociais (as mulheres, os negros, os moradores das periferias são os que mais estão sofrendo na pandemia).

Em uma condição de isolamento social, os participantes reforçaram a importância de todos ficarem em casa como forma de proteção. Durante o isolamento, as instituições estabeleceram novos arranjos para as atividades cerimoniais. Os grupos que normalmente organizam orações coletivas têm orientado para fazê-las em casa, além das atividades (especialmente as celebrações) pelas redes sociais. Também têm ocorrido celebrações, cultos ou rezas com os templos ou casas fechadas, com a participação somente de lideranças religiosas.

Com relação às reflexões sobre que sociedade pós-pandemia, os elementos “comuns” presentes nas diversas falas foram os seguem.

A. Reaprender a viver

Nesse momento de “crise sanitária”, os seres humanos são “chamados” a reaprender a viver. Essa deve ser a grande lição: “olhar” outros humanos, e demais seres vivos, com respeito. O Sagrado está na convivência e na empatia. “Amar ao próximo como a si mesmo”. Faz-se urgente deixarmos o individualismo para viver uma sociedade coletiva, deixar para traz o “eu” e construir o “nós”. A educação (humanizada) deve ser voltada para a colaboração e não para a competição.

B. Viver com o essencial

O ser humano precisa aprender a viver a simplicidade. O capitalismo nos estimula a querer ter muito, mas, precisamos aprender a viver com aquilo que realmente é necessário ou essencial. Vivemos em uma sociedade com base na acumulação econômica. Isso precisa ser repensado!

C. Cuidar do planeta

É urgente a necessidade de cuidarmos de nosso planeta e não permitir o desmatamento, a poluição, a utilização de agrotóxicos; aprender a dominar a natureza não é, simplesmente, impor nossa vontade. É necessário um posicionamento político, ético e ecológico responsável.

D. Valorizar a Ciência

É fundamental a valorização da Ciência, contudo, os avanços nessa área não podem ter como prioridade atender aos interesses econômicos, mas sim a produção do conhecimento a favor da vida e da preservação do planeta.

E. Outro sistema econômico

Para uma nova relação entre os seres humanos, e de nós com o planeta, é necessária a mudança do atual sistema econômico; o capitalismo se preocupa mais com o lucro do que com as pessoas. O sistema mostrou-se ineficaz na proteção (durante a pandemia) da sociedade, por falta de relações de trabalho dignas ou estruturas públicas de saúde adequadas.

F. Educação e Saúde

Precisamos de políticas públicas adequadas para a população; o fortalecimento de políticas de educação (com princípios colaborativos) e saúde (o SUS, por exemplo) precisa atender a toda a sociedade; a dignidade humana deve ser o mais importante paradigma.

A pandemia do coronavírus evidenciou os problemas sociais brasileiros. Mostrou-nos sua dimensão e a urgência de enfrentá-los. O modelo econômico “neoliberal”, vigente em nosso país, que trata o enxugamento do Estado (privatizações, desmonte de projetos sociais) e a retirada de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras como fatores de “modernização”, não deu conta de resolver os problemas trazidos pela necessidade de uma parcela das pessoas ficar em casa para se proteger. Isso agravou a pobreza! O Estado, num país de altíssima concentração de renda, como o caso brasileiro, não pode negar políticas públicas que conduzam para “equilibrar” fatores de desigualdades.

A sociedade atual, conforme ponderado pelos religiosos, precisa repensar os “valores” que orientam as decisões pessoais e coletivas – sobretudo as “decisões políticas”. O que propõem é uma profunda reflexão sobre uma “nova sociedade”. Com valores humanos, voltados para a colaboração, para uma cultura de paz, em que prevaleça o respeito e a diversidade.

Utopia, talvez! São elas que fazem as sociedades seguirem caminhando.