Religiosos que questionam aborto não fazem nada para combater estupro, diz teóloga

Atualizado em 20 de agosto de 2020 às 0:02

Publicado originalmente na Ponte Jornalismo 

Por Neto Rossi

Isabel Aparecida Felix, teóloga e integrante do movimento Católicas pelo Direito de Decidir. Foto: Elisa Gargiulo

O caso da criança de 10 anos, que engravidou após passar 4 anos sendo estuprada por um tio, chamou a atenção do Brasil inteiro depois que a Justiça concedeu autorização para que a gestação fosse interrompida, de acordo com a lei que permite o aborto em alguns casos. O suspeito, que é tio da vítima, foi preso na manhã desta terça-feira (18/8), em Belo Horizonte, Minas Gerais.

Durante todo o fim de semana, grupos religiosos conservadores ficaram em frente ao Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), ligado à UPE (Universidade de Pernambuco), no Recife, na tentativa de impedir o aborto. Na mesma medida, grupos que defendiam o direito de a menina interromper a gravidez também fizeram vigília na frente do centro médico. O procedimento foi concluído nesta segunda-feira (17/8).

Na sexta-feira (14/8), o juiz Antônio Moreira Fernandes atendeu a um pedido do Ministério Público, favorável à interrupção da gravidez. Na decisão, consta “que é legítimo e legal o aborto acima de 20-22 semanas nos casos de gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia fetal”.

Para a teóloga Isabel Aparecida Felix, integrante do grupo Católicas pelo Direito de Decidir e doutora em Ciências da Religião, o fundamental não é discutir a questão sob a ótica religiosa, mas, sim, “de onde olhamos e que interesses defendemos”.

Isabel destaca que um dos posicionamentos mais coerente é olharmos para a situação da vítima do estupro com compaixão e também como uma pessoa portadora de direitos, de justiça e de dignidade.

Em entrevista à Ponte, Isabel reafirma o posicionamento do coletivo formado por católicas progressistas, que defende a descriminalização do aborto.

Segundo a teóloga, por ser uma questão de saúde pública, o grupo luta por três bandeiras: educação sexual para decidir, a prevenção com os contraceptivos, incluindo os emergenciais, e o acesso ao aborto legal e gratuito. “Esses são os direitos pelos quais lutamos tanto em uma perspectiva teológica feminista como em uma perspectiva feminista social”, destaca.

Confira a entrevista:

Ponte – Os religiosos conservadores se posicionam contra o aborto porque acreditam que nenhuma pessoa tem o direito de tirar uma vida. É possível levar esse caso para uma discussão sob a ótica religiosa e faz algum sentido, teologicamente falando, o posicionamento desses religiosos?

Isabel – Em primeiro lugar, penso que seria muito importante salientarmos que o aborto legal que esta menina e sua família decidiram buscar nos serviços públicos de saúde — um direito garantido há 80 anos pelo Código Civil Penal — é a consequência de muitos atos brutais de violência que esta criança vinha sofrendo há 4 anos. A gravidez que a menina carregava em seu ventre, ainda em formação, foi fruto de um ato de violência sexual não consentida, um estupro. Logo, a interrupção desta gravidez é a consequência. A causa é muito mais profunda: é o estupro que as meninas e mulheres brasileiras vêm sofrendo em seus corpos desde o período da colonização.

Enquanto respondo a entrevista, quatro meninas ou mais, de até 13 anos de idade, estão sendo estupradas no Brasil, e o perfil do agressor é de alguém muito próximo da vítima e de sua família. Entre 2011 e 2016, o Ministério da Saúde apontou que o país registrou 4.262 casos de estupro em adolescentes que resultaram em gravidez. A partir desses dados, penso que é urgente que os poderes políticos olhem para o estupro como uma violência brutal e que, de fato, implementem políticas públicas, para combater e enfrentar essa violência que está destruindo as vidas de meninas e mulheres.

Aos religiosos que questionam sobre o aborto que essa menina teve o direito de realizar, por causa do estupro que sofreu, eu pergunto: por que vocês não falam e discutem sobre o crime do estupro cometido pelo estuprador? Por que não falam e não fazem nada para contribuir para combater este crime? Por que esses líderes religiosos não veem a público para discutir e defender sobre o respeito ao corpo desta e de todas as meninas? Por que não discutem e não fazem com que sejam respeitados os Direitos Humanos das meninas e das mulheres? Penso que o fundamental não é olhar para estas questões a partir de uma visão religiosa, mas é a partir de onde olhamos, que interesses defendemos e que vidas realmente importam.

Ponte – Ainda sob a ótica religiosa, em alguma situação o aborto não deve ser feito? Ou em qualquer situação é a mulher quem deve decidir?

Isabel – Nós como Católicas pelo Direito de Decidir defendemos que todas as mulheres em qualquer situação da vida devem ter o seu direito de decidir sobre o seu corpo, sua sexualidade e sua vida em geral respeitado.

Ponte – Diante desse caso específico da menina de 10 anos, qual deveria ser o posicionamento mais coerente, religiosamente falando?

Isabel – A historiadora da Religião Karen Armstrong, em seu livro “Doze passos para uma vida de compaixão”, afirma que o valor da compaixão é comum nas quatro grandes religiões: Budismo, Judaísmo, Cristianismo e Islã. Concordo com esta autora, porém, a compaixão também é um valor humano e, como ela, a justiça e a dignidade também. Penso que, ao invés de julgarmos esta menina da qual estamos conversando, um dos posicionamentos mais coerentes, tanto religioso como humano, é olharmos para a situação da vítima do estupro com compaixão e também como uma pessoa portadora de direitos, de justiça e dignidade.

Ponte – Enquanto o aborto for criminalizado no Brasil, a senhora acredita que situações como essa serão vistas ainda por todos nós? Qual seria então o caminho para que casos assim sejam resolvidos sem tanto ódio, sem tanta polêmica e fazendo com que a mulher tenha mais liberdade em suas escolhas?

Isabel – Bem, no caso da menina que estamos conversando, foi realizado um aborto legal, pois ela atendia as duas condições amparadas pelo Código Penal Brasileiro de 1940: gravidez decorrente de estupro e quando a vida da mulher está em risco. E mesmo a Justiça tendo autorizado a interrupção da gravidez, o direito desta menina continuou sendo violado, porque houve resistência da equipe médica do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes-HUCAM, em Vitória (ES). Além de alegar que o estágio da gestação estava avançado, esses profissionais da saúde desconsideraram que, em caso de risco à vida da criança, a interrupção pode ser realizada em qualquer idade gestacional. A menina só conseguiu que seu direito à interrupção da gravidez fosse respeitado no Hospital no Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros, no Recife.

Como vemos neste caso, mesmo o aborto legal no Brasil é criminalizado por uma parcela da sociedade, tanto por questões religiosas quanto culturais. Por isso que, antes mesmo de defendermos a descriminalização do aborto, por ser no Brasil uma questão de saúde pública, defendemos e lutamos também por educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar, aborto legal e gratuito para não morrer. Essas são as três consignas e que são os direitos pelos quais lutamos tanto em uma perspectiva teológica feminista como em uma perspectiva feminista social.

Sabemos que este é um trabalho árduo de conscientização em todas as camadas da sociedade. Porém, se a parcela religiosa continuar agindo com hostilidade sobre as meninas e mulheres que realizam aborto legal por serem estupradas, seguiremos culpabilizando as vítimas e não os estupradores. Esse é um caminho que ainda precisamos aprender a trilhar no Brasil.