Repórter do DCM é presa no Egito após ato pró-Palestina: “Pensei que seria violentada”

Atualizado em 17 de novembro de 2023 às 13:23
O grupo da jornalista é cercado pela polícia

Para os que me seguem no DCM, imagino que deva ter sido perceptível a súbita interrupção da cobertura dos acontecimentos em Gaza desde o Egito.

Por razões de segurança, fui aconselhada a falar apenas em solo britânico, uma vez que a inteligência egípcia passou a nos monitorar de perto, inclusive dentro do hotel. Não mencionarei nomes de pessoas e entidades por causa da possibilidade de sofrerem retaliações.

Essa história começa no dia 10 de novembro, quando embarquei de Londres para a cidade do Cairo para me juntar a uma delegação internacional de jornalistas, advogados e ativistas que seguiria em um comboio de ajuda humanitária até a passagem de Rafah, na fronteira com a Palestina – a linha divisória entre a vida e a morte para muitos dos palestinos na Faixa de Gaza.

Organizações da sociedade civil egípcia têm conclamado “os cidadãos livres do mundo” a se juntarem ao seu comboio da consciência global com o objetivo de pressionar a abertura da passagem de Rafah e permitir que todas as formas de ajuda humanitária, como alimentos, água, medicamentos e combustível entrem de forma efetiva, e exigir a saída incondicional dos feridos graves.

A presença internacional nos comboios deve ser entendida para além de um prática simbólica de solidariedade e pressão internacional. Mais ainda no caso palestino. Essa presença tende a dificultar que as práticas interditórias de ajuda humanitária se desenvolvam sem receber atenção internacional.

No caso da Palestina, a obstrução da ajuda humanitária não é uma possibilidade, é um dos métodos do genocídio. Rafah foi bombardeada inúmeras vezes, e o governo israelense fechou os canos que abastecem Gaza com água e declarou ostensivamente e sem constrangimentos publicamente as suas intenções e seus métodos.

Numa segunda feira, nossa delegação, que havia estado em contato com um funcionário do Departamento de Estado dos EUA, se dirigiu à sede da embaixada, onde entregaria uma carta exigindo que o governo Biden encerrasse imediatamente o financiamento e o armamento de Israel, e garantisse a abertura da fronteira para a entrada imediata e o fluxo contínuo de ajuda humanitária urgente.

Antes mesmo da entrada, seguranças se aproximaram do nosso grupo com hostilidade. A conversa que se seguiu com a delegação foi em árabe, e em um dado momento foi exigido que fôssemos para o outro lado da avenida. Assim o fizemos. Minutos depois, os mesmos seguranças, agora em maior número, atravessaram a avenida e aproximaram-se dos membros da delegação, exigindo ver passaportes e agressivamente intimidando com palavras de ordem.

Num dado momento, o que parecia ser um delegado de polícia saiu de um carro e veio gritando e gesticulando em total e absoluto descontrole. Subitamente, ele atacou, com socos violentos, um membro do grupo.

Viatura da polícia do Egito no momento da prisão dos jornalistas

Talvez tenha sido o famoso dedo duro dos coronéis que babam por sangue. A vítima era o único egípcio de um grupo de quase 20 pessoas. Ele foi automaticamente identificado por um cão farejador. Um veterano de guerra interveio e conseguiu abraçar o egípcio e evitar mais ataques. Os gritos e a aproximação de outros do grupo reforçaram a defesa. O veterano de guerra desapareceu no ar, e na delegacia estava apenas seu passaporte e a dificuldade da policia em identifica-lo. Ele tinha conseguido escapar.

Em segundos, dois camburões estacionaram e a polícia chegou em números espetaculares, nos cercando, tomando celulares, bolsas, passaportes. Neste momento consegui, com meu celular na mão do policial escrever ao Kiko Nogueira, meu editor- chefe: “Estou presa”.

Na delegacia, as duas americanas de origem palestina tiveram a preferência e o privilégio das delicadezas. Foram assediadas e interrogadas separadamente, enquanto os demais policiais pareciam obcecados em identificar as pessoas de origem árabe — sou descendente de libaneses.

Me levaram sozinha até uma sala à prova de som com portas que se fecham como um bunker. Pensei que iria ser violentada sexualmente. Felizmente eram duas mulheres que me revistaram detalhadamente e fizeram perguntas. Quando falei que era brasileira, além de britânica, perderam um pouco o interesse e me enviaram a outra sala. Agradeci por dentro a diplomacia do Itamaraty de longa data, pela sabedoria de evitar confrontos com bandidos.

Fui levada a uma sala com o restante da delegação, à exceção do egípcio/americano. Ele contou a uma pessoa do grupo que “fizeram algo com ele”, mas não quis especificar.

Enquanto éramos interrogados repetidamente sobre as mesmas perguntas, a obsessão em saber de cada americano e britânico não branco “de onde você é originalmente”? “de onde são seus pais?” nunca se satisfazia.

Nesse meio tempo, entrou uma gata bebê na sala. Atraí ela para o meu colo, a sua inocência era um consolo real. Mas não era apenas a atitude da polícia que me preocupava, mas o espírito desafiador sem propósito de alguns jovens americanos na sala, que não entendiam que não estavam sendo detidos pela polícia de Nova York, mas de um regime ditatorial do Oriente Médio.

Alguns dos americanos insistiam em demonstrações vazia e deliberadas de desafio. Em 2016, o jornalista italiano Giulio Regeni foi morto no Cairo. Ele foi torturado por dez dias e seu corpo foi jogado à beira da estrada. Ninguém jamais foi punido por seu assassinato. Não era uma brincadeira, e a atitude arrogante e ignorante de alguns americanos me causou certo pânico.

Vi pelas câmeras de segurança quatro egípcios, de aparência muito pobre, sendo mais precisa, miserável, sendo levados em algemas a sala/ bunker. Nunca os vi sair de lá em todo o tempo em que estive na delegacia observando as câmeras. Esse foi o momento mais triste do encontro com a realidade de uma ditadura. Rezei por eles.

Um famoso correspondente de guerra americano, que já tinha sido refém num país do Oriente Médio, conseguiu, junto com dois outros mais experientes, baixar o tom do grupo e da polícia com firmeza e tranquilidade. A tensão foi esvaziando, e depois de horas começava a ficar sem propósito e embaraçoso prender quase 20 americanos e britânicos, nações cúmplices.

No interrogatório, a palestina/americana mostrou comprovante da doação de dinheiro para o Crescente Vermelho Egípcio, as comunicações com a embaixada americana e ingressos para ver as pirâmides de Giza. Esse era o álibi, não nosso, mas para o policial que autorizava encerrar a missão. Quando já era noite, nos devolveram os passaportes dizendo: “Podem retornar ao Egito quando quiserem, foi só um mal entendido”.

A embaixada americana, que foi contatada no momento da nossa detenção por uma membra da delegação que estava no hotel, segundo ela, não mostrou nenhuma iniciativa em ajudar seus cidadãos. O mesmo oficial da embaixada foi perguntado diretamente se teve envolvimento na nossa detenção. Ele não negou nem confirmou a participação da embaixada nas detenções, mas sabemos que a segurança acionou a policia. A delegação foi seguida pela inteligência egípcia durante o resto da viagem. Há uma grande possibilidade de que nossos telefones tenham sido grampeados.

O Comitê Internacional da Cruz Vermelha reportou que dois comboios que transportavam suprimentos médicos foram atingidos por bombardeios em Gaza. As autoridades de saúde palestinas reportaram que 23 dos 35 hospitais pararam de funcionar devido à falta de energia. Muitos dos que morreram, inclusive bebês, não foram por bombas, mas por falta de água ou assistência médica.

Sara V. com as caixas de doações para os palestinos na sede do Vermelho Crescente Egípcio

Em visita ao Crescente Vermelho Egípcio, o equivalente à Cruz Vermelha, membros da nossa delegação foram instruídos “por razões de peso” a colocar apenas 40 latas de atum em caixas de mais de 100 litros de volume e fecha-las. O mesmo para outros mantimentos. As únicas caixas que podiam ser preenchidas até seu limite eram aquelas contendo sacos para cadáveres. Fica a dúvida de onde parte tal protocolo da arbitrariedade.

Nossa permissão para atravessar os seis postos de controle no deserto do Sinai não foi recusada, apenas não chegou a ser autorizada a tempo, segundo as autoridades egípcias.

A TV pública egípcia exibe o massacre em Gaza. Cenas gráficas bárbaras são transmitidas de forma ininterrupta. Cenas que eu então nunca vi na TV e na imprensa “livre” britânica.

Quando um dos policias teve o desplante de declarar, “vocês estão sendo tratados muito bem, não é assim com os egípcios”, ele  estava na verdade sendo sutil. O que fica dessa experiência foi uma exibição de clareza abundante da arbitrariedade e racismo contra os palestinos, contra sua causa. Nossa experiência foi uma cortesia, uma amostra grátis do que os palestinos vivem em seu cotidiano. Para mim, emerge, agora, mais do que nunca com muita clareza, urgência e determinação o que deve alimentar o espírito de luta pela libertação da Palestina.