Repórter que denunciou estupro deixa o Intercept: “Tudo se tornou insuportável”

Atualizado em 22 de dezembro de 2020 às 9:42
A repórter Amanda Audi

A repórter Amanda Audi, que acusou de estupro o professor Alexandre Andrada, da UnB (Universidade de Brasília), publicou nesta terça-feira (22) seu último texto no site The Intercept Brasil.

A jornalista publicou uma série de reportagens sobre a Vaza Jato, o caso das mensagens vazadas do aplicativo Telegram dos integrantes da Lava Jato em Curitiba.

Leia abaixo o último texto de Amanda Audi no Intercept:

Este é o meu último texto no Intercept.

Entrei no site em julho de 2018, junto com várias outras pessoas. Era a equipe mais diversa e interessante que já vi em ação. Gente jovem, com sangue nos olhos, querendo fazer a revolução no jornalismo.

E acredito que fizemos.

Lembro de uma conversa em que o Leandro Demori, nosso editor executivo, nos disse para aproveitar bem aquela fase. Estávamos vivendo uma utopia, fazendo o tipo de trabalho que sempre queríamos fazer, mas não encontrávamos espaço em outras redações.

No site, passei por aventuras como comer miolos de bode servidos no crânio do animal, enquanto era vigiada por pessoas provavelmente armadas, em um sítio no interior do sertão da Paraíba. Viajei três dias pelo Espírito Santo em busca do ex-senador Magno Malta e, num golpe de sorte, sentei ao lado dele no avião de volta a Brasília – isso resultou na primeira entrevista em que ele relatou sua mágoa com Jair Bolsonaro. Também tomei drinks com o mentor de Hamilton Mourão em uma festa privada do PRTB em São Paulo, na qual ele me relatou os bastidores da campanha de 2018 e sentenciou que o vice ainda se tornaria presidente. Ainda publiquei uma entrevista com uma ex-assessora de Sergio Moro, que explicava como era fácil a Lava Jato manipular a imprensa.

Publicamos juntos a Vaza Jato, provavelmente a maior investigação jornalística do país nos últimos anos. Mas também trabalhamos em muitas outras coisas. Incomodamos poderosos e promovemos mudanças muito importantes para o nosso tempo. Sem as nossas matérias, provavelmente a imagem de Sergio Moro ainda estaria intacta, assim como outras tantas falcatruas.

Além do jornalismo utópico, tivemos momentos inesquecíveis como amigos. Ou uma família. Passamos juntos pelo medo de uma batida da Polícia Federal na época da Vaza Jato e de todos os ataques que recebemos de poderosos, outros jornalistas e até de pessoas desconhecidas que, por algum motivo (podemos tentar adivinhar), achavam que o Intercept era financiado por George Soros para implantar o comunismo no Brasil – e outras sandices dessa linha.

Nosso grupo sempre foi um ambiente leve, divertido. Colocávamos na parede da redação (quando ainda havia trabalho presencial) as moções de repúdio e outras tentativas de intimidação que recebíamos. Dávamos muita risada. Muita, muita risada. Claro que há divergências e conflitos, como é saudável acontecer em qualquer lugar. Mas a gente primordialmente ria muito.

O Intercept vai continuar o trabalho notável que vem desempenhando, e as pessoas da equipe continuam sendo incríveis, cada uma do seu jeito. O problema é que eu, pessoalmente, não estou mais rindo tanto.

Passei por uma situação pessoal muito complicada em 2019, sobre a qual estou impedida judicialmente de falar (mas qualquer pessoa com um Google pode ter uma ideia do que é). Meus gestores e colegas tentaram me ajudar e tomaram medidas desde o começo. Sempre estiveram ao meu lado. Não me senti desamparada. Mas existem coisas que ultrapassam o poder da boa vontade.

Essa situação silenciou a minha voz – o bem mais precioso que tenho e que nunca abri mão mesmo quando o bom senso dizia que eu deveria me calar para manter um emprego, como já aconteceu em outra redação em que trabalhei no passado, não incomodar uma pessoa com poder ou mesmo criar uma situação desconfortável.

Quem me conhece – e acho que muitos de vocês me conheceram um pouquinho nestes dois anos e meio – sabe que eu não costumo falar muito, mas sempre falo o que acho que é necessário. Foi isso que me levou ao jornalismo e ao reconhecimento que conquistei ao longo da minha carreira – que ainda é curta, mas me rendeu alguns orgulhos.

Pois, desde que esta situação aconteceu comigo, eu me fechei. Perdi boa parte da força e motivação. Não gosto muito de falar sobre a minha vida pessoal, mas acho importante ressaltar que tive que buscar apoio psicológico e psiquiátrico para lidar com a dor e o desconforto.

Os fatos se arrastaram até as últimas semanas, quando tudo se tornou insuportável, e eu entrei de vez na redoma de vidro que Sylvia Plath descreveu no livro homônimo.

Não queria sair do Intercept. Mas, para sobreviver, preciso buscar novos ares.

Sei que 2020 foi um ano complicado para todo mundo. Mas estou lutando para que 2021 seja melhor, para mim e vocês.

Agradeço de coração por todo o apoio e carinho que recebi dos leitores e dos colegas de trabalho. As desavenças, poucas, eu já resolvi conversando com cada pessoa – mais uma vez, não acredito que o silenciamento seja benéfico em nenhuma situação.

Por fim, não desejo que ninguém mais seja obrigada a se calar como eu fui. Reluto a opção de tentar silenciar quem fez isso comigo, pois a liberdade de expressão é um dos valores que mais prezo, justamente por ser inerente à democracia.

Que o Intercept continue falando bem alto. E vocês, também.