O relançamento de “Iracema – Uma Transa Amazônica”, previsto para 24 de julho de 2025, representa uma homenagem ao cinema nacional, celebrando seus 50 anos desde o lançamento em 1975, agora com uma nova versão remasterizada em 4K e seu primeiro trailer de divulgação.
Essa é uma oportunidade única de revisitar uma obra emblemática, que conquistou reconhecimento internacional e permanece extremamente relevante nos dias atuais.
A ocasião ganha ainda mais significado por acontecer justamente no ano, na cidade e no Estado-sede da aguardada COP 30, que será realizada em Belém do Pará, no coração da Amazônia. Dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, com roteiro de Hermano Penna e Bodanzky, o filme foi premiado em diversos festivais nacionais e internacionais. Sua relevância reside na abordagem corajosa e crítica às questões sociais, ambientais e políticas da região amazônica.
Jorge Bodanzky, aluno da segunda turma de cinema na UNB (1963-1964), engajou-se nos movimentos estudantis de oposição ao golpe de 1964. Seu envolvimento com temas ecológicos e sua sensibilidade para as questões ambientais se aprofundaram durante as aulas com Hans Fortmann — cinegrafista de Darcy Ribeiro, que filmou temas relacionados à biodiversidade na Amazônia e no Cerrado, então considerados berços de um novo campo de estudos, da investigação à preservação.
Com o fechamento da universidade em 1965, pelo regime de exceção responsável por perseguições, prisões, torturas e assassinatos de professores e estudantes, Bodanzky decidiu passar um período estudando na Alemanha.
“Tive a sorte de ser aluno de Paulo Emílio Salles Gomes na UNB. Ele me abriu os olhos para o cinema, no curso de ‘Apreciação de Cinema’. E completa: ‘Eu entro para o cinema pela fotografia’”, disse.
Na Alemanha, a questão ambiental já era uma preocupação nas escolas no final dos anos 60 e início dos anos 70. Justamente por essa razão, conseguiu obter patrocínio de seus orientadores alemães para atuar na produção de “Iracema”. A ideia do roteiro nasceu após seu retorno ao Brasil, em 1968.
Nesse período, trabalhou como fotógrafo freelancer na revista Realidade, e foi nessa época que viajou pela primeira vez à Amazônia para uma reportagem. Acompanhado de um repórter, permaneceu duas dias esperando em um posto de gasolina, onde passou a observar a rotina diária do local: durante o dia, vendiam combustíveis e lanches; à noite, o posto se transformava numa zona de prostituição. Para Bodanzky, aquele episódio foi revelador:
“Se algum dia for contar a história dessa estrada, será através desses dois personagens — o caminhoneiro e a menina que se prostitui”, afirmou.
O filme, em estilo docudrama, narra a trajetória de um caminhoneiro (interpretado por Paulo César Pereio, conhecido como Tião Brasil Grande) e uma prostituta (Edna de Cássia, Iracema), que viajam pela então recém-construída Rodovia Transamazônica. O caminhoneiro expressa otimismo quanto ao progresso do Brasil e à transformação que a obra prometia trazer, acreditando que a floresta amazônica ajudaria a modernizar o país. Em seu caminhão, aparecem adesivos do regime militar, como “Brasil, ame-o ou deixe-o” e “Do destino ninguém foge”.

A narrativa retrata de forma vívida o processo de expansão econômica e ocupação desordenada na floresta, destacando as dificuldades de preservação das comunidades indígenas e os impactos devastadores das intervenções humanas na região.
Denuncia o desrespeito às comunidades tradicionais e mostra as formas de resistência indígena, que muitas vezes se rebelaram contra as obras do governo — uma luta de proteção às suas terras e modos de vida. Durante a ditadura militar, essas ações de resistência resultaram em rebeliões que reforçaram o espírito de luta dessas comunidades.
“O cinema sempre foi vanguarda dos movimentos revolucionários, tanto para o bem quanto para o mal, como na URSS ou na Alemanha de Hitler”, declarou Bodanzky.
A justificativa para o relançamento de “Iracema” é a necessidade urgente de denunciar o contínuo abandono da região conhecida como o “faroeste caboclo” brasileiro — uma área marcada pela exploração predatória de madeireiros e garimpeiros, que transforma as terras em uma verdadeira terra de ninguém.
Essa devastação ameaça populações indígenas, fauna e flora locais, evidenciando a vulnerabilidade do Estado diante de interesses predatórios. Ignorar essa realidade perpetua a destruição e a impunidade, tornando-se imprescindível que mobilizações sociais se façam presentes para proteger esses povos e esse ecossistema ameaçado.
Na época de seu lançamento, o filme foi bastante polêmico, enfrentando críticas e censura do regime militar por sua abordagem direta e seu retrato das contradições do desenvolvimento na Amazônia. “Iracema — uma Transa Amazônica” sempre teve forte ligação com o movimento cineclubista, sendo essa a forma mais difundida de exibição até hoje.
Sua repercussão crítica foi significativa, consolidando-o como um marco do cinema político brasileiro. Sua narrativa impactante, que retrata as injustiças sociais, garantiu reconhecimento duradouro pelo cenário internacional, além de promover debates essenciais sobre a preservação ambiental e os direitos indígenas
O relançamento em grande circuito reforça sua importância histórica e social, promovendo uma reflexão sobre os escrúpulos do progresso desenfreado e a luta das comunidades tradicionais pela preservação de suas terras e culturas. Em novembro de 2015, o filme entrou na lista feita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos.
Transcende seu tempo, continua relevante e urgente, convidando novas gerações a entenderem a complexidade das questões amazônicas e a necessidade de respeitar e valorizar as populações originárias e nosso bioma tão devastado e corrompido desde o período pós-1964 até hoje — décadas de exploração e devastação inescrupulosa.