Revelação de ex-presidente da Fifa confirma envolvimento da Globo na corrupção do futebol mundial. Por Joaquim de Carvalho

Atualizado em 8 de junho de 2018 às 19:49
Em tradução livre, o que diz Blatter no livro sobre a TV dos irmãos Marinho: “Então eu descobri que uma caixa preta foi formada com um desvio da televisão brasileira”

No livro “Minha Verdade”, que acaba de lançar na Europa, o ex-presidente da Fifa Joseph Blatter, informa que descobriu que dinheiro da Rede Globo foi desviado para a criação de uma “caixa-preta” no futebol.

Segundo resenha publicada por Jamil Chade, em O Estado de S. Paulo, Blatter revela que, num primeiro momento, imaginou que o esquema usado para pagamento de propina — “caisse noir” — envolvesse, da parte da Fifa, apenas Ricardo Teixeira e não João Havelante, sogro de Teixeira, o presidente mais longevo da entidade.

Mas Blatter conta que, depois, tomou conhecimento, através do processo conduzido no tribunal do cantão de Zug, Suíça, que o dinheiro desviado acabou em contas de Havelange também — US$  1 milhão (R$ 3,7 milhões em valores atuais). Ricardo Teixeira, segundo ele, ficou com US$ 12,4 (R$ 45,4 milhões).

Blatter não cita o nome da Globo nem faz referência a seu envolvimento direto no pagamento de propina. A ISL, empresária intermediária condenada na Suíça, é quem fazia os pagamentos. Segundo Chade, a referência à TV Globo é mantida sob sigilo no processo.

Na série de reportagens que publiquei no DCM, contei que o dinheiro que saiu da Globo, em 1998, para assinatura do contrato que garantiu para a Globo os direitos de transmissão das Copas do Mundo de 2002 e 2006 fez escala em uma série de paraísos fiscais, com ponto de partida no Uruguai até cair na conta da ISL, a intermediária da propina.

A Globo sonegou impostos no Brasil, ao simular a compra de uma empresa no exterior que detinha os direitos de transmissão, a Empire, com sede em Road Town, nas Ilhas Virgens Britânicas. Leia reportagem com o tributarista Jarbas Machione e o documentário do DCM sobre sonegação da Globo.

Quando estive em Road Town, nas Ilhas Virgens, descobri que era apenas uma empresa de papel, criada pelo próprio Grupo Globo, como admitiu a própria empresa, na fase final da investigação da Receita Federal no Brasil.

Nos documentos encontrados na ISL, a então vice-presidente Globo, Marluce Pinto, e o diretor Marcelo Campos Pinto, assinam o contrato juntamente com a Empire, no ato representada por um laranja.

Como a Empire se tornou, formalmente, detentora dos direitos de transmissão, a Globo usou benefícios fiscais, com base na lei que incentivava a expansão de empresas nacionais no Exterior, para adquirir os direitos de transmissão.

Deveria pagar pelo menos 15% de imposto de renda, alíquota devida na aquisição de qualquer bem no exterior, mas não pagou nada. Pelo contrário, contabilizou a compra da Empire, empresa dela própria, como despesa e, com isso, reduziu o imposto a pagar.

O auditor fiscal que conduziu o processo administrativo multou a Globo em mais de R$ 600 milhões (em dinheiro de 2006) e determinou a denúncia dos controladores da empresa, Roberto Irineu Marinho, João Roberto Marino e José Roberto Marinho, ao Ministério Público Federal por crime contra a ordem tributária.

Na véspera da representação da Receita Federal ser encaminhada para o MPF, o processo desapareceu de uma delegacia do Fisco no Rio de Janeiro, subtraído por uma funcionária de baixo escalão, mais tarde exonerada do serviço público e hoje moradora um apartamento que vale 4 milhões de reais em Copacabana, em prédio vizinho àquele em que Roberto Marinho tinha um triplex, famoso pelas festas de Reveillon.

A ex-funcionária da Receita Federal chegou a ficar alguns meses presa, mas foi liberada por habeas corpus concedido pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.

O Ministério Público Federal, alguns anos depois, provocado por uma associação de jornalistas independentes, arquivou a denúncia contra a Globo, depois de uma investigação preliminar conduzida pela Polícia Federal.

O mecanismo narrado por Blatter para descrever a caixa preta gerada pelo dinheiro da Globo é semelhante ao narrado por um empresário de marketing esportivo da Argentina, em depoimento de colaboração com a justiça americana,  Alejandro Burzaco.

Segundo ele, a Globo pagou por direitos de transmissão da Copa América muito mais do que o valor de mercado, a empresas intermediárias, para gerar caixa 2 que resultavam no pagamento de propina.

Entre os que receberam propina, de acordo com a investigação, estão José Maria Marin, ex-presidente da CBF, preso nos Estados Unidos, e Marco Polo Del Neto, banido do futebol pela Fifa e hoje refugiado no Brasil, assim como Ricardo Teixeira, ex-presidente da CBF, que também não sai do país para não correr o risco de ser preso.

A revelação de Blatter coloca a Globo mais uma vez na condição de empresa no polo ativo da corrupção do futebol internacional, agora às vésperas de mais uma Copa do Mundo.

A Globo, como registra a reportagem de Jamil Chade, nega que tenha agido com dolo nessa esquema de propina.

“O Grupo Globo sempre negociou direitos de transmissão de boa-fé. Nas suas relações comerciais, como em todas as suas atividades, nada é mais importante do que adotar práticas éticas e transparentes. O Grupo Globo não tem conhecimento desses fatos e reafirma que não tolera nem paga propina”, informou.

Para usar a linguagem futebolística, é como se a Globo dissesse que todos os corruptos marcam gol para o time dela, isto é, em seu benefício, mas ela não tem nada a ver com isso.

Soa tão verdadeiro quanto imaginar que, na próxima Copa, o Panamá, estreante no mundial, levantará o caneco.

Não dá, impossível de acontecer.

Mas só uma tragédia pessoal poderá impedir que a maioria da população tenha de conviver com Galvão Bueno, no monopólio de transmissão em TV aberta no Brasil, gritando, ufanisticamente, que a Seleção Brasileira é um orgulho nacional.

E até é, pelo talento de seus jogadores. Mas a Globo é uma vergonha.

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Para ver todas as reportagens da série Caso de Sonegação da Globo, financiada pelos leitores através de crowdfunding, acesse o arquivo de especiais DCM.