Piada com autistas?? A série da Netflix que explodiu os limites do humor. Por Kiko Nogueira

 

Uma série passada num asilo de velhos, cujo personagem central é um deficiente mental chamado Derek. Seja sincero: você pensaria duas, três vezes antes de dar uma chance.

Mas você vê a assinatura de Ricky Gervais, um dos melhores comediantes do mundo, o inventor de The Office, o mestre de cerimônias do Golden Globe que acertou no coração dos egos de Hollywood com tanta maestria, e dá uma conferida.

Derek é um homem simples que ajuda a enfermeira Hannah (Kerry Godliman) a cuidar de idosos numa instituição que vive à beira da insolvéncia. Seus melhores amigos são Dougie (Karl Pilkington), cuja careca esquisita, ladeada por longos fios de cabelo, é definida por ele mesmo como um “ovo com suíças”, e Kev, vagabundo metido a galã que sobrevive do seguro-desemprego.

Um oficial do governo aparece para verificar as instalações e fica intrigado com Derek. “Você já fez um teste para saber se é autista?”, ele pergunta. “Se eu fizer um teste, eu vou morrer? Isso vai mudar alguma coisa em mim? Quer dizer, eu serei a mesma pessoa?” O fiscal diz que sim. “Então você não precisa se preocupar com isso”.

Podia ser um show de pieguice. Mas Derek rompe os limites entre documentário, drama e comédia. Gervais também enfrenta um tabu fazendo rir de um personagem limítrofe — ou melhor, com ele. Não há, em tese, graça possível nisso. Só para ficar num exemplo: a desastrosa Casa dos Autistas, da MTV, uma das ideias mais infelizes da história da tevê.

Gervais consegue.

Ele chegou a usar doentes de Alzheimer nas filmagens. É parte de seu modus operandi. “Quando eu mostro um personagem com deficiência, eu contrato alguém com deficiência — a cadeirante em The Office, o rapaz com síndrome de Down em The Extras. Se Derek fosse autista, eu chamaria Dustin Hoffman”, diz. Para ele, não vem ao caso diagnosticar seu protagonista.

E não vem, de fato. Derek fala de um assunto simples: a bondade. Não há cinismo. Há sutileza e sensibilidade — e um punhado de excelentes piadas. Não espere encontrar o maravilhoso chefe sem noção de The Office. Derek, Hannah e seus velhinhos são uma ilha de resistência contra o ceticismo.

Há duas temporadas no Netflix. É mais um gol do canal por streaming, que continua surpreendendo com suas produções originais (se você não viu Orange is the New Black, veja. Se não viu House of Cards, veja. Se não viu Bojack Horseman, idem e ibidem). Qualidade dá audiência, dinheiro e prestígio.

Gervais é um criador corajoso. Mandou o politicamente correto e o incorreto para o lixo. Que novidade existe em espicaçar minorias? Que coragem existe em tirar sarro de mais um político?

Louie CK, seu genial colega americano, também transcendeu essa discussão. Seu seriado, Louie, trata de suas agruras de pai separado, tentando criar duas filhas pré-adolescentes. A mão delas é negra.

Nas mãos de um humorista brasileiro — e não precisa ser limitado como Danilo Gentili — esse tipo de material seria explosivo porque não há complexidade. Não há comédia possível com um deficiente mental ou com uma negra que não seja para ofendê-los. Os que se sentem incomodados são vítimas da ditadura da correção política.

Ricky Gervais elevou a comédia a outro patamar. Derek cumpre a função de provocar risadas, eventualmente, forçando o espectador a segurar as lágrimas ao mesmo tempo. A doçura é a prova dos nove.

 

Kiko Nogueira

Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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