O impacto do dono da Abril na mídia brasileira.
Não é fácil escrever sobre a morte de Roberto Civita, para mim.
A Abril foi minha casa, a Abril foi minha escola, a Abril foi meu amor, com os altos e baixos de todas as paixões.
E Roberto Civita era a Abril.
“Você é como um filho para mim, Paulo”, ouvi dele certa vez. Acho que ele estava sendo sincero. Ou pelo menos eu era o Paulíssimo, como ele me chamava nos e-mails intermitentes que jamais deixamos de trocar.
Quando deixei a Abril, em 2006, frustrado por não ter sido promovido a presidente executivo como tinham me prometido, RC disse para mim na conversa de despedida: “A Abril vai ser sempre sua casa”.
Se a nossa casa definitiva é a casa da juventude, dos grandes anos e das grandes esperanças, ele não poderia estar mais certo.
RC carregou, desde logo, o inevitável fardo dos herdeiros. Você o tempo todo tem que provar – para você mesmo – que não é apenas filho de seu pai.
Você o tempo todo procura se diferenciar de seu pai, e isto nem sempre é bom.
No caso de Roberto Civita, ele acabou tendo um estilo de administração muito mais distante do que o de seu pai, o fundador Victor Civita.
Seu Victor dirigia o próprio carro, e andava sempre pela empresa, com seu sorriso quilométrico e a simplicidade de quem você não vai estranhar se encontrar na feira.
Roberto adotou um modelo mais distante de comandar a empresa. Isso se refletiu, sobretudo, em seus principais subordinados.
Um presidente executivo recém-contratado me contou certa vez que, logo ao chegar, quis visitar a redação da Exame. Perguntou a um veterano vice-presidente em que andar ficava. “Não sei”, foi a resposta.
Outro traço em que Roberto se afastou do pai foi na atitude perante o negócio. Seu Victor foi essencialmente um empreendedor: fez revistas, e fez hotéis, frigoríficos, clubes de livros etc.
Não se tinha propriamente na conta de editor, e isso acabou deixando mais espaço por vários anos para profissionais brilhantes.
Você só entende Mino Carta como diretor da Veja à luz da distância de Seu Victor. Mino conseguiu assinar um contrato pelo qual a família Civita só comentava a revista depois que ela estava pronta.
Na cabeça pragmática de Victor Civita pareciam estar claros os papeis: todos os jornalistas eram seus empregados, como o organograma demonstrava. Tinham que fazer bons textos, boas legendas, boas capas, bons títulos, boas fotos.
A clareza da subordinação dos jornalistas evitou que se estabelecessem rivalidades entre dono e jornalistas. O editor poderia dar uma entrevista na televisão, ser chamado de gênio e bajulado, mas não deixaria de ser empregado de Victor Civita.
A cena mudou quando, no início dos anos 80, Victor Civita – num gesto que se tornaria inspirador para muitos empreendedores brasileiros – se afastou dos negócios no gozo de saúde e lucidez e dividiu-os entre os dois filhos, Roberto, o primogênito, e Richard.
Roberto ficou com o pedaço principal, as revistas. E seu envolvimento com elas foi muito mais intenso, muito mais apaixonado e muito mais complexo do que o de seu pai.
Isso trouxe coisas boas e coisas ruins. Um dono que ama visceralmente o negócio dá à comunidade um sentimento de orgulho considerável: estamos fazendo uma coisa incrível. Somos parte de um tremendo projeto.
Mas há, por outro lado, uma inevitável ocupação de um espaço que estava livre. Roberto Civita acabou pegando as revistas para si, sobretudo a Veja – com a qual ele teve uma relação de amor total, incondicional, à prova de tudo, como se fossem ambos Romeu e Julieta.
Com isso, o papel dos editores profissionais foi se tornando menor. Entendo que reside aí a explicação do que aconteceu nos últimos anos na Veja.
Depois de duas grandes gestões, a de Mino Carta, primeiro, e a de JR Guzzo e Elio Gaspari depois, a Veja acabaria sendo entregue a editores que, limitados, não fizeram os contrapontos indispensáveis a Roberto Civita. E No caso de RC o contraponto era crucial: ele não era um editor natural como, por exemplo, Henry Luce, o criador da Time. Ele era, acima de tudo, um animador.
Curiosamente, o que houve acabou sendo a negação a uma máxima que RC gostava de repetir: “Uma revista é seu editor”. Os editores profissionais da Veja foram sumindo e RC foi crescendo cada vez mais.
A falta de contraponto acabaria levando a duas calamidades editoriais que destruiriam a aura de equilíbrio e pluralidade que foi a grande marca da Veja em seus anos de ouro.
Primeiro foi Diogo Mainardi, com sua selvagem caça a Lula, a quem chamava de sua “anta”. No começo dos anos 2000, Mainardi mainardizou a Veja. O espírito intolerante e brutal de sua coluna como que se espalhou pela revista.
O serviço seria completado por Reinaldo Azevedo, com seu blog raivoso, extremista, no qual a “anta” foi substituída pelo “apedeuta”.
Um bom editor teria percebido logo os estragos provocados por ambos, e teria alertado RC sobre as infrações ao jornalismo decente dos dois. Num certo momento, a Veja, por Azevedo, estava chamando Nassif de ‘nassífiles’, o que era inimaginável antes.
Cada um a seu jeito, Mainardi e Azevedo contaminaram a maneira de ver o mundo da Veja – e também a maneira como o mundo vê a Veja.
Editores mais fortes teriam impedido a ação corrosiva de Mainardi e Azevedo.
Fiquei impressionado com as manifestações de ódio de que foi objeto, em sua doença e morte, Roberto Civita nas redes sociais na internet.
A Abril foi, durante muitos anos, amada pelos brasileiros, paulistanos sobretudo. Uma das campanhas marcantes da empresa tocava nisso: “A Abril faz parte de sua vida”.
Fazia mesmo, com suas revistas de alto nível, com suas coleções como Os Pensadores e tantas outras. A Abril popularizou até a música clássica numa coleção primorosa.
É naquela Abril, em seu espírito único entre as empresas jornalísticas brasileiras, que a nova geração poderá encontrar respostas para o futuro da casa nesta era digital.
A receita estava lá. Está lá.
Vou lamentar, evidentemente, o silêncio do conversador extremamente charmoso, divertido, provocador, inteligente – com seu sotaque americano jamais superado.
Vou lamentar a ausência dos e-mails destinados ao Paulíssimo, e terei que matar a saudade nos que guardei, assim que a leitura não doer tanto.
Pensarei nele sempre com um exemplar de sua tão amada Veja nas mãos. Acho que se ele pudesse negociar sua próxima vida, esta seria uma das principais exigências – a possibilidade de ler a Veja.
Roberto Civita, o RC, com toda a sua complexidade, vai estar para sempre vivo em minha memória, em meu coração e em minha gratidão.