Ronald Biggs, o fanfarrão do século, já descansou demais em paz

Atualizado em 24 de outubro de 2014 às 16:12
Em Copacabana, em 1985
Em Copacabana, em 1985

 

Ronald Biggs morreu, para alguns, como um símbolo de rebeldia, Robin Hood, arquiteto do roubo do século, “ladrão do século”. Não era nada disso. Biggs foi, talvez, o primeiro sujeito famoso por ser famoso. Era um espertalhão, eventualmente sortudo, que capitalizou em cima de uma obra do acaso e da sede por sensacionalismo.

Cometia pequenos golpes no sul de Londres quando o convidaram a participar do assalto ao trem pagador em 1963. O bando afanou, em valores atualizados, perto de 40 milhões de libras (151 milhões de reais), e capturou a imaginação da época. Assaltos desse tipo eram coisa de bangue-bangue.

A função de Biggs, que não bolou nada do crime, era recrutar um maquinista aposentado. Como o homem que ele arregimentou era incompetente, eles tiveram de forçar o maquinista Jack Mills a cooperar. Biggs usou uma barra de ferro em sua cabeça para convencê-lo. Mills morreria sete anos depois, em conseqüência dos golpes. Biggs deixou as digitais num tabuleiro de Banco Imobiliário e numa garrafa de ketchup. Era o único que não usava luvas. Nunca se arrependeu do que fez a Mills.

Em 1964, foi condenado a 30 anos de cadeia e detido. Fugiu 15 meses depois, durante uma rebelião, fabricando uma corda para pular o muro. Em Paris, pagou 40 mil libras por uma cirurgia plástica no rosto (malfeita, aliás). Encontrou-se lá com a mulher, Charmian, e acabou na Austrália.

Com a polícia em seu encalço, viu um postal do Pão de Açucar e falou: “Esse é o lugar para mim”. Abandonou Charmian e os três filhos e foi para o Rio em 1970. O mais velho morreria em um acidente de carro em 1971.

Em 1974, com o nome de Michael Haynes, vivia à farta no Rio de Janeiro, bebendo e contando para quem estivesse por perto que era o notório “Ronnie Biggs”. A conversa chegou a um repórter do tabloide Daily Express e ali teve início uma relação lucrativa com a mídia sensacionalista inglesa. Chegou a ser abordado por agentes de extradição, que não tinham os papeis adequados para levá-lo de volta à Inglaterra. A confusão em torno disso apareceu em todos os jornais. Falastrão, farrista, virou uma espécie de cidadão carioca honorário.

Conheceu uma dançarina numa boate, Raimunda, com quem teve um filho, Mike (mais tarde membro da Turma do Balão Mágico). Virou jurado de concursos de beleza, freqüentava festas, aparecia na revista Manchete. Em 1978, os Sex Pistols gravaram com ele a música “No One Is Innocent”. Dois dos integrantes da banda passaram uns dias com Biggs na praia e se esbaldaram no carnaval, como manda o manual do gringo.

Foi seqüestrado em 1981 por soldados mercenários que queriam uma recompensa por sua cabeça. O grupo foi até Barbados. Seus advogados conseguiram devolvê-lo ao Brasil, onde permaneceu livre, leve e solto. Sem trabalhar, abriu sua casa para visitas de turistas. Cobrava pelas fotos e vendia camisetas. Ficou doente e deprimido. Tentou se matar ao menos uma vez.

Biggs só foi para a Inglaterra em 2001, com problemas graves de saúde, e num jato de um dono de jornal, como parte de um acordo por uma reportagem. Queria, na verdade, se tratar lá. Foi preso e libertado em 2009 por razões humanitárias. Mesmo com a fala afetada por diversas moléstias, ainda faturava com reportagens sobre suas aventuras, cada vez mais fantasiosas, à la Lobão.

Biggs teve uma trajetória formidável, mas virou um emblema de algo que nunca foi. Em agosto, em seu aniversário de 84 anos, disse em sua última entrevista: “Eu queria ser lembrado como um bom pai. Um bom marido. Um bom irmão. Um bom amigo. Um bom homem”.

Tarde demais. Ronald Biggs era um fanfarrão que merece ser esquecido.