‘Rota do interior’ criada por Doria mata dez em 5 dias. Por Arthur Stabile

Atualizado em 15 de outubro de 2019 às 23:29

Publicado na Ponte

Foto de PMs publicada na página ‘Batalhão de Ações Especiais de Polícia – BAEP S.J. do Rio Preto’ no Facebook | Foto: Reprodução

Por Arthur Stabile

“Todos os policiais que vão atuar no Baep passarão por treinamento no Comando de Policiamento de Choque, com o padrão Rota de treinamento”. Dessa forma o governador de São Paulo, João Doria, anunciou a criação de novos Baep (Batalhão de Operações Especiais) da Polícia Militar no estado. Passados dez meses, uma dessas unidades, localizada em São José do Rio Preto, soma dez mortes de suspeitos em menos de cinco dias.

O Baep é conhecido por ser um grupamento “padrão Rota” que atua no interior do estado. A Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) é considerada a tropa mais letal entre todas que formam a PM paulista, com histórico de sangue vindo desde a época da ditadura militar, conforme revelado pelo jornalista Caco Barcelos no livro “Rota 66”. Aumentar a presença da Rota, sob o nome Baep, no interior era uma promessa de campanha do governador Doria. O primeiro batalhão do tipo foi criado pelo antecessor Geraldo Alckmin, em 2014, na época da Copa do Mundo, com foco em ações antiterroristas.

As dez mortes são decorrentes de ações nos dias 7 e 12 de outubro, com quatro e seis mortos, nesta ordem. No primeiro caso, a polícia descreve que homens tentaram assaltar uma chácara no Jardim Veneza, cerca de 11 quilômetros do centro da cidade, por volta de 1h da madrugada do dia 7. Quatro homens teriam abordado duas mulheres e fugido com a chegada do dono da casa.

Ullisses Rogério Souza dos Anjos, Lindomar Viana e os outros dois suspeitos, não identificados no B.O., estavam em um veículo Corsa na Avenida Antônio Cabrera Mano, quando abordados pelo Baep. A viatura 55 da tropa, sob comando do sargento Nivaldo Guirão, iniciou uma perseguição quando os suspeitos saíram em fuga. Os PMs Luís Henrique Arcencio Arcanjo, Leandro Marques Alves, Breno Viana Martins Ribeiro, Thiago Tridico, Célio Cordeiro dos Santos Júnior, Daril José Afonto Rita, Clodoaldo de Souza, Emerson Henrique Barbosa Nogueira e Gioavani Fantis Padovam também participaram da ação.

Dois dos homens estavam no banco traseiro e teriam deixado o carro a pé, atirando na direção dos policiais. Eles conseguiram fugir. Os outros dois também atiraram quando o carro parou, forçando que os PMs, “para repelir a injusta agressão”, atirassem, conforme consta em B.O., matando os dois.

A viatura 50 do Baep de São José do Rio Preto encontrou os outros dois homens na rua Felipe Assad Karam às 2h50 da mesma madrugada. O roteiro foi o mesmo: eles tentaram fugir atirando nos policiais, que revidaram e os mataram. Um dos homens usava uma pistola Taurus calibre .40 com registro “SSP-SP-PC”, furtada da Polícia Civil, conforme consulta feita pelo delegado João Otávio Spaca de Souza.

Cinco dias depois, uma ocorrência terminou com seis mortes em uma casa no Alvorada, próximo ao aeroporto da cidade. Na versão oficial, uma denúncia anônima apontava que homens usavam vários armamentos na residência. Às 21h22, 11 PMs do Baep foram ao local, que é dividido em quatro casas.

Um PM permaneceu com moradores da primeira residência, enquanto os outros avançaram. Segundo o documento da Polícia Civil, uma série de confrontos aconteceu, e os policiais acabaram matando todos os suspeitos no local. Um cabo foi atingido no peito, mas o projétil não atravessou o colete à prova de balas. A reportagem não obteve o nome de todos os policiais militares envolvidos nesta ação.

Segundo o DL News, um portal de notícias de Rio Preto, a polícia investiga se os homens integravam o PCC (Primeiro Comando da Capital) e se planejavam revidar a morte das quatro pessoas no dia 7 de outubro. “No local foram aprendidos papéis com anotações e estatuto dessa facção criminosa, rifa… tudo leva a crer que sim, que eram membros sim da facção criminosa”, explicou o comandante da companhia do Baep, capitão José Thomaz Costa Júnior, ao DL News.

Proposta e crítica

No início da gestão, João Doria (PSDB) anunciou a criação de 22 novos Baeps. Até o momento, foram inaugurados 6: em 8 de fevereiro foram criados o 6º Baep, em São Bernardo do Campo, o 7º, sediado na capital, subordinado ao Comando de Policiamento de Área Metropolitana-1 (CPA/M-1); o 8º, em Presidente Prudente; o 9º, em São José do Rio Preto. Em 26 de agosto, mais dois batalhões foram inaugurados: o 10º, em Piracicaba, e o 11º, em Ribeirão Preto.

“As unidades especializadas foram criadas para combater o crime de maneira mais ostensiva em todo o Estado, já que as equipes atuam de forma semelhante aos padrões do policiamento de Choque”, diz trecho do texto do site do governo que anunciava a criação dos últimos dois Baeps, em agosto deste ano.

A criação de mais batalhões com essa especificidade é criticada por especialistas desde quando Doria ainda era candidato ao cargo que hoje ocupa. Havia três preocupações: a retirada de tropa de outros locais para a implementação dos novos Baeps, o controle de letalidade policial e a real necessidade destas áreas possuírem tropas especializadas.

O coronel aposentado da PM paulista e ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho participava de um grupo de especialistas na área que construía o plano de governo de ainda candidato Doria. Com a intenção de levar ao interior o “padrão Rota”, Vicente deixou o coletivo. Ele explica que este tipo de efetivo é necessário para ações que levam mais riscos à população e à polícia, que demandam mais treinamento para um resultado efetivo.

À Ponte, o coronel explica por qual razão entende a ideia como ruim. “Ter 17 Baeps é uma coisa absurda. Você pega 5 mil PMs para prepará-los por dois anos, tempo do treinamento em que estarão fora das ruas. Fora que São José do Rio Preto não é uma área com grande necessidade dessa tropa como poderia ser Presidente Prudente e o Vale do Paraíba, pela presença de presídios, por exemplo”, explica Vicente, citando casos de roubo de carro forte como uma ação para o Baep, mas que ocorre “apenas uma vez por mês” e não cria a demanda para uma tropa em cada região do estado.

Para ele, a letalidade policial é algo preocupante e os casos recentes em Rio Preto representam isso. “O risco que sempre tem é o controle de letalidade. Sem exagero, bem ou mal, teremos que aguardar um pouco, não tem como fazer análise agora desses dois casos”, diz. “Tivemos um incremento de mortes [provocadas pela polícia] desse ano no Vale do Paraíba em relação ao ano passado. Mas é prematuro julgar que tem efeito da estruturação dos Baeps ou pelo conceito errado de emprego policial”, prossegue.

Também coronel reformado da PM paulista, Adilson Paes de Barros vê uma mensagem aberta por parte do governador quando fala em “padrão Rota”. “Não é de hoje que estão falando de ‘padrão Rota’ de policiamento. Na verdade, é passar mensagem de que se pode matar, que polícia presente na rua significa polícia que mata. Foi usado durante a campanha do Bolsodoria, ele usou isso muito”, analisa. “A Rota tem essa mística e fama de ser a tropa que mata, assim como o Bope no Rio de Janeiro. A Rota é o nosso Bope e vice-versa”.

Adilson pondera que há duas explicações possíveis para o registro de duas ocorrências com número elevado de mortes no mesmo batalhão: “Ou a criminalidade perigosa resolveu ir para lá e a polícia teve que ter esse tipo de atitude por haver mais confronto, ou é uma orientação do comando agir assim, ter mais letalidade, da política de o quanto mais letal mais eficiente se é”, afirma.

Desde a posse de Doria, a polícia paulista têm registrado acréscimo no total de mortos pelas tropas. Segundo revelado pela Ponte, números oficiais apontam que um a cada três homicídios registrados no estado tem policiais, civis ou militares, como autores. Das 1.392 mortes intencionais, 426 são das polícias.

Os discursos de Doria, como candidato ou governador, seguem a linha de que a polícia deve mandar “criminosos para o cemitério”. A declaração foi feita após a Rota, em ação conjunta com o COE (Comandos e Operações Especiais), matar 11 suspeitos de roubo a banco em Guararema, na Grande São Paulo, quando Doria homenageou os PMs envolvidos na ação. Um relatório da Ouvidoria da Polícia de SP, divulgado em setembro, cinco meses após a ação, apontou exagero na legítima defesa e indícios de que quatro deles morreram sem esboçar reação.

Na criação do Baep de Presidente Prudente, o governador declarou que “com a Rota não se brinca”. “Aqui nós teremos agora policiais preparados, treinados para qualquer tipo de enfrentamento, no campo e na cidade, dentro da nova política de segurança pública do Estado de São Paulo”, seguiu, no dia 11 de abril.

Para o coronel Adilson, a lógica bélica na segurança pública pode trazer mais mal do que bem para a polícia. “Toda vez que existe a defesa de uma lógica permissiva da polícia matar quando se tem uma ocorrência de grande número de mortos, a maior prejudicada, institucionalmente, é a polícia”, pontua. Ele usa como exemplo o massacre do Carandiru, em 1992, a operação Castelinho, em 2002, e os Crimes de Maio, em 2006, para falar sobre “fatos envolvendo a polícia que chamaram a atenção” . “Quanto mais se tolera a letalidade na polícia, pela ideia de que é mais eficiente e trará mais segurança, a história mostra que sempre acontece uma tragédia, um fato que abala ainda mais a imagem da instituição”, finaliza.

A Ponte questionou a SSP (Secretaria da Segurança Pública) de São Paulo, pasta sob comando do general João Camilo Pires de Campos, sobre as ações do Baep de São José do Rio Preto. No entanto, não recebeu nenhum posicionamento oficial até a publicação desta reportagem.