Safatle: “Frente de esquerda para quê? Ninguém vai às ruas apenas para dizer não”

Atualizado em 3 de setembro de 2017 às 15:48
Safatle

Publicado na Carta Capital.

Após incursões em sua área de formação, a Filosofia, Vladimir Safatle volta a se concentrar no debate político contemporâneo. O título de seu mais recente livro, “Só mais um esforço”, a ser lançado no início de setembro, é uma referência a uma famosa frase do Marquês de Sade de estímulo aos concidadãos desanimados com os rumos da Revolução Francesa. Há, portanto, no âmago da análise, uma mensagem de esperança em relação ao futuro do Brasil, erguida sobre camadas de críticas agudas aos rumos da esquerda, ao chamado lulismo e à eterna conciliação das elites.

Convidado do “Direto da Redação”, programa de entrevistas do site de CartaCapitaltransmitido pelo Facebook e pelo YouTube, o professor da USP explicou as teses do livro e respondeu a perguntas dos “sócios” e “sócias” da revista. Safatle duvida da realização de eleições em 2018 (“quem deu o golpe não vai correr o risco de perder o poder”) e critica o campo progressista por apostar todas as fichas na incerta disputa eleitoral do próximo ano.

“Frente de esquerda para quê?”, indaga a certa altura. Segundo ele, antes de pensar em uma ampla união eleitoral, as lideranças progressistas e os movimentos sociais precisam descobrir o que tem a dizer de novo aos eleitores.

CartaCapital: Seu novo livro se chama “Só mais um esforço”. Por que escolheu esse título?

Vladimir Safatle: É uma referência a uma famosa frase do Marquês de Sade. Quando ele lançou “Filosofia da Alcova”, havia no interior do livro um panfleto que afirmava: “Franceses, só mais um esforço se quiserem ser republicanos”. Foi uma maneira de dizer aos leitores que, para estarem à altura dos processos de transformação em curso, no caso a Revolução Francesa, seria necessário um pouco mais de fôlego e compreensão. Muitas vezes esses momentos podem parecer complicados, mas tem potencialidades a serem exploradas. Achei interessante e válido de se lembrar neste nosso momento.

CC: Por quê?

VS: Entendo a leitura melancólica atual, devido ao tipo de catástrofe que vivemos, ao fato de o Estado brasileiro ter rompido todos os vínculos com a democracia formal e de estarmos sob o domínio de uma cleptocracia. Pode estimular a sensação de beco sem saída. Insisto, porém, que essa percepção não deve ser tomada como uma verdade absoluta. Há potencialidades a serem exploradas. Existem condições para alcançarmos um outro momento da nossa história. Mas, para tanto, é preciso entender o que de fato aconteceu. Falta, a meu ver, um esforço da intelectualidade para interpretar esse momento.

CC: No livro, o senhor se esforça para localizar o Brasil nos fenômenos mundiais. Ou seja, o que acontece aqui não seria um episódio isolado.

VS: Pretendi me contrapor a essa visão de que o Brasil é a maior ilha do mundo, como se todos os processos sociais e históricos fossem endógenos, não houvesse um articulação do País com o que se passa no resto do planeta. Acho bem provável que tenha se desenrolado aqui o último capítulo da história da esquerda do século XX.

CC: De que maneira?

VS: A esquerda durante o século XX, em especial após a Segunda Guerra, tentou operar no interior dos sistemas de acordo da democracia liberal como uma potência de transformação paulatina, a começar pela construção do Estado de bem-estar social. De uma certa maneira, a esquerda da América Latina também atua nesses limites. No momento em que a socialdemocracia entra em colapso na Europa, seu berço, ela ganha espaço na América Latina. No Brasil, o PT não nasceu como um partido socialdemocrata, mas assim se consolidou com o passar do tempo e durante sua experiência no governo. Portanto, o fracasso recente no País não é só nosso. Representa o fracasso de um modelo da esquerda mundial, que havia se tornado hegemônico no Ocidente a partir da segunda metade do século XX. Como sempre, a América Latina entra de forma retardatária nesse processo, por conta de seus enormes déficits de democracia e participação popular.

CC: Há condições de se criar uma frente de esquerda para disputar as próximas eleições?

VS: A consolidação das estruturas populares exige uma mudança no jogo político. A esquerda não pode imaginar que irá governar de fato em um horizonte no qual as forças hegemônicas se mobilizam para imobilizá-la. Por que a Nova República foi construída sobre o presidencialismo de coalizão? Por ter sido montada para impedir a esquerda de governar.

CC: Se um presidente progressista for eleito em 2018, o que ele precisaria fazer de diferente?

VS: Não acredito em eleições em 2018 (risos). E há várias maneiras de se bloquear um processo minimamente democrático. Temos o exemplo da Bielorrússia, uma disputa na qual todos os “indesejáveis” são excluídos do jogo eleitoral. Acredito que esta será a primeira estratégia adotada por quem está no poder. Se não der certo, existe a possibilidade de modificar completamente o sistema eleitoral. Em resumo: implementar o parlamentarismo. No caso brasileiro, não existe pior saída. Os eleitores já recusaram o parlamentarismo duas vezes em plebiscito. O Parlamento do Brasil, todo mundo sabe, não é o da Alemanha. É uma caixa de ressonância dos piores interesses oligárquicos. Criaram um sistema casuísta para vencer em qualquer circunstância. Se ainda assim não vingar, não descarto uma guinada ainda mais autoritária. Limitar as discussões às eleições do próximo ano paralisou o campo progressista.

CC: Como?

VS: Volto a uma pergunta anterior. Fala-se em uma frente de esquerda, mas para quê? Não está claro. O que se quer? O objetivo é retomar o que foi feito antes, com um ajuste aqui e outro ali? Ou seria fazer diferente? Mas o quê? Seria bom discutir outros questões mais elementares. O que a esquerda tem hoje a oferecer ao Brasil, a não ser resistências pontuais: dizer não a esta ou àquela reforma? Sem respostas a estes pontos, sua força de mobilização diminui substancialmente. Ninguém vai às ruas apenas para dizer não. Você mobiliza quando é capaz de levar os cidadãos a pensar em uma possibilidade que ainda não se configurou, mas é viável.

CC: No livro, o senhor reforça suas críticas ao chamado lulismo. Pode explicar sua interpretação do fenômeno?

VS: O lulismo consolidou pela primeira vez um sistema mínimo de seguridade social no País e reconstituiu o capitalismo de Estado. Por um certo tempo, ocorreu um processo de inclusão social considerável, 42 milhões de brasileiros experimentaram essa ascensão. O problema é que havia uma data de validade. Foram vários os entraves. Faltou uma política de combate à desigualdade. Ocorreu, na verdade, uma capitalização dos pobres. Este mecanismo não reduz as diferenças e causa um paradoxo: os mais ricos continuam a ganhar muito e acabam por puxar os preços da economia para cima, encarecendo a vida nas cidades, principalmente nas metrópoles. Isso não aconteceu apenas no Brasil. Luanda, em Angola, padeceu do mesmo efeito. Não à toa, entre 2008 e 2014, o valor dos imóveis em São Paulo triplicou. A consequência é que o ganho dos mais pobres é corroído com o passar o tempo. Chega um momento no qual quem está no poder é obrigado a gerir a paralisia.

CC: Foi o que aconteceu com Dilma Rousseff, certo?

VS: Sim. O lulismo tinha uma trava. Ele reproduziu em boa medida o populismo getulista, fundado na ideia de que governar é administrar coalizões. Não demonizo o populismo, apenas o analiso aqui. Os liberais valem-se da estratégia de trata-lo não como um conceito descritivo, mas como injúria. Associam o termo à irracionalidade. Não é o meu caso.

CCDá para imaginar um neolulismo? O senhor acredita nessa possibilidade?

VS: Mais importante é saber se o Lula acredita. Suas participações políticas recentes não estimulam a aposta nessa hipótese. Se querem fazer o mesmo de novo, o melhor seria não insistir nesse debate sobre uma frente de esquerda. Isso demonstra a incapacidade de reorganização do campo progressista sob outras bases. É verdade que o Lula lidera todas as pesquisas. Impressiona-me, porém, que muitos estejam preocupados apenas com o horizonte eleitoral e não gastem energia para criar uma nova hegemonia a partir da força das suas ideias. Insisto: não existe 2018, não vejo a mínima possibilidade de quem deu o golpe abrir mão do poder tão facilmente. Eles não vão embora, não vão aceitar perder. O único modo de combater é consolidar um processo de mobilização.

CC: O quanto o momento atual é fruto das manifestações de 2013?

VS: Considero 2013 a maior oportunidade perdida pela esquerda. O embate ideológico, que estava recalcado, floresceu. O campo progressista deveria estar à altura do que as ruas pediam naquele momento.

CC: E o que as ruas pediam?

VS: A começar, uma transformação da experiência política. Ficou evidente a crise da representação. E não só dos partidos. A mídia, os sindicatos, as organizações foram colocados em xeque. E depois, a insatisfação diante da interrupção do processo de ascensão social. Basta lembrar do slogan: “Quero escola padrão Fifa”. Muitos daqueles que experimentaram essa ascensão tiraram os filhos da escola pública e transferiram para uma instituição privada. Durante os anos do PT, 24 milhões de alunos deixaram o sistema público. Também abriram mão do SUS e adquiriram planos de saúde. Por fim, compraram carros. Junte os três gastos. Os ganhos de renda acabaram corroídos por eles. O nível de frustração foi elevadíssimo. Em 2010, 2011, o mundo inteiro celebrava o Brasil. Seríamos a quinta maior economia do planeta, projetava-se. A Copa do Mundo prometia repaginar as nossas metrópoles. E, de repente, começou-se a perceber que nada acontecia mais.

CC: É a pior frustração.

VS: O conceito vem do Alexis de Tocqueville. As revoluções, dizia, não são feitas pelos mais pobres, mas por quem está em ascensão e se vê frustrado pela interrupção desse processo. Por aqueles que percebem não haver mais futuro. O Brasil de 2013 assistiu à explosão desse tipo de frustração. Era uma grande oportunidade para o campo progressista abraçar essa pauta e romper com certas alianças que sempre a impediram de transformar a realidade. Mas todas as agremiações de esquerda, todas, sem exceção, demonstraram um arcaísmo inacreditável naquele momento.

CC: A Nova República chegou ao fim?

VS: O PT foi o último fiador do modelo de conciliação da Nova República. Acreditou na perenidade de um sistema de resolução de conflitos políticos minimamente democrático. Que não haveria mais golpes de Estado. Que existia uma ala racional no PSDB. Uma visão, nota-se agora, completamente falha. Não há mais conciliação possível. Essa promessa da Nova República não pode mais se realizar. É preciso saber acionar os extremos. O conflito de classe no Brasil nunca foi assumido enquanto tal. Foram 14 anos de um governo que aplicou o programa clássico de esquerda, socialdemocrata, e nem assim foi tolerado. Não se conseguiu fazer nenhuma discussão séria sobre uma reforma tributária de verdade, para criar um sistema de impostos progressivo, que não onerasse tanto os trabalhadores e os mais pobres. Para não citar outros exemplos.