Saia justa na premiação da IstoÉ. Por Miguel Enriquez

Atualizado em 4 de dezembro de 2018 às 16:50
Escritor Geovani Martins menciona Lula em seu discurso (Foto: Marco Ankosqui/Divulgação)

POR MIGUEL ENRIQUEZ

Era para ser um daqueles eventos modorrentos, que servem para bajular um punhado de poderosos da política e dos negócios, de louvação ao governo de plantão, recheado de manifestações de confiança no futuro do país. Como ocorre há 29 anos, a premiação Brasileiros do Ano, promovida pela revista “IstoÉ, carro chefe da Editora Três, nesta segunda-feira (3), no Credicard Hall, em São Paulo, tinha tudo para seguir esse script.

Mas não seguiu, para desconforto de seus organizadores e para uma boa parte do público presente, formado majoritariamente por executivos de segundo e terceiro escalões e consultores. Na verdade, a festa transformou-se num inusitado palco de debate político, que teve como centro o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atualmente encarcerado na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba.

Como de praxe, a cerimônia foi aberta pelo presidente executivo da Editora Três, Caco Alzugaray. Após mencionar as dificuldades atravessadas pela economia brasileira, nos últimos anos, Alzugaray festejou a retomada, ainda que lenta, das atividades. “Até a Petrobras, que foi eleita pelo governo anterior como a grande vítima a ser corrompida e destruída pelo nefasto objetivo da perpetuação no poder, está em franca recuperação e acaba de registrar lucro recorde”, disse.

Ele aproveitou, também, para lançar pontes com o presidente eleito, Jair Bolsonaro. “A distância ideológica que nos separa deste governo, não é maior da que a que nos separa de quem torce contra ele, torce para que o país se arrebente de novo”, afirmou, com a mesma convicção e energia com que saudava alguns premiados de anos anteriores, por coincidência integrantes dos governos petistas, como Antônio Palocci ( 2003), José Dirceu (2004), Dilma Rousseff (2010 ) e Guido Mantega ( 2012).

Além, é claro, do próprio Lula, consagrado como Brasileiro da Década, ao deixar a presidência da República, na edição de 2010, que praticamente foi santificado, pela Istoé, na ocasião. “ No dia 1º de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixará o Palácio do Planalto e entrará para a história do Brasil”, afirmou a revista. “Os oito anos de mandato de Lula foram marcados por realizações que mudaram a face do País. Graças aos programas de inserção social e ao forte crescimento da economia, quase 13 milhões de pessoas ultrapassaram a linha de pobreza absoluta. A renda per capita subiu para US$ 10 mil, aproximando-se do padrão de países desenvolvidos. Contingentes da população que integravam as faixas D e E ascenderam rapidamente para os grupos C e B.”

Coube justamente a um dos premiados, o jovem escritor carioca Geovani Martins, 27 anos, vencedor da categoria Brasileiro do Ano na Cultura, fazer o resgate da figura do ex-presidente, ao afirmar que saber que Lula lera seu livro Sol na Cabeça na prisão foi “um dos grandes orgulhos” de sua vida. “Eu sou muito agradecido pelo governo do Lula, sempre vou ser agradecido e gostaria que esse recado chegasse a ele”, disse.

“Você não está sozinho, presidente.”Em sua intervenção, Martins não deixou de criticar os retrocessos na política cultural nos últimos anos, sem se preocupar com a presença, entre as autoridades convidadas, do atual ministro da Cultura, Sérgio de Sá Leitão, que se notabilizou, na reta final do segundo turno da campanha eleitoral, pela produção da fake News de que a polêmica temporada do cantor Roger Waters, fora contemplada com um aporte de R$ 90 milhões da Lei Rouanet, mais tarde desmentida pelos técnicos de sua pasta.

Pabblo Vittar com o dono da Istoé, Caco Alzugaray

A manifestação de Martins, negro, morador da favela do Vidigal, no Rio de Janeiro, foi reforçada pela atriz negra Jéssica Ellen, escolhida a Brasileira do Ano na Televisão, para quem o governo Lula fez diferença na vida de muitas pessoas. “Talvez eu estaria aqui nesse evento, mas limpando o chão”, disse Jéssica, que atribuiu sua educação ao ensino público e a bolsas e projetos concedidos durante o governo Lula. “Hoje eu estou aqui tendo a oportunidade de comunicar.”

Coube ao governador eleito de São Paulo, João Dória, premiado como Brasileiro do Ano na Política, contrapor-se às declarações de Martins e Jéssica. Inicialmente, o tucano rebateu a critica à gestão de Sérgio Sá Leitão no Ministério da Cultura –não por acaso, o ex-ministro será um dos integrantes de sua equipe de governo.

Pegando carona no discurso do ministro do STF Luiz Roberto Barroso, que dedicara seu prêmio de Brasileiro do Ano na Justiça, aos delegados, juízes e promotores ” que atuam contra a corrupção e à sociedade brasileira que deixou de aceitar o inaceitável”, Dória elogiou o ex-juiz Sérgio Moro e aos “que colocaram Lula na cadeia, onde deveria estar há muito tempo.”

Vaiado por um pequeno grupo da plateia, que revidou a suas palavras com gritos de “Lula livre”, Doria, que arrancou aplausos da ala majoritária dos convidados, abreviou sua fala, não sem antes chamar os descontentes de “vigaristas”.

Encerrada a cerimônia de premiação, Dória explicitou sua posição. “Alguém vem aqui pedir ‘Lula livre’? Eu não acredito, nem deposito qualquer tipo de apoio a quem pede Lula livre.”, afirmou. “ Eu quero Lula na cadeia, e que ele cumpra na cadeia os crimes que cometeu. Aliás, ele e qualquer outro criminoso, de crime do colarinho branco ou não.”

A saia justa provocada por Martins, que tanto incomodou João Dória, acabou colocando em segundo plano a presença da cantora Pabblo Vittar, escolhida a Brasileira do Ano na Música, que fez uma defesa da população LGBT. “”Queria agradecer a todas as pessoas que acreditaram no meu sonho. A todas as pessoas que acreditaram numa criança ‘viada’, afeminada, nordestina”, disse. “E oferecer esse prêmio a todas as Marias, Anas, Fernandas, Dandaras, Pabblos Vittares, travestis, gays, humanos. Esse prêmio é para vocês.”

Pabblo, por sinal, estava vestida com um longo azul, com uma fenda quilométrica que escancara as tatuagens de sua perna e coxa direita, para delírio da plateia.