
Por Leonardo Sakamoto, no UOL
O roteirista desta novela de baixo orçamento chamada “Brasil” vai se superando a cada dia. Desta vez, o ex-presidente Jair Bolsonaro alegou que tentou, com um ferro de solda, destruir sua tornozeleira eletrônica porque estava com “alucinação” de que havia alguma escuta dentro dela. Por ter tentado derreter o equipamento, o que permitiria sua fuga, ele foi preso ontem.
A desculpa do “foi mal, tava doidão” tem efeito limitado. Porque mais do que comprometer Bolsonaro, compromete quem vier agarrar ao seu legado nas eleições de 2026. Quem quiser herdar o seu espólio pode carregar não só votos, mas também a imagem de um político que admite que atropelou a lei por alucinação.
Interações medicamentosas podem levar a estados alterados de consciência, isso é fato. Poderíamos até nos solidarizar com ele, se o contexto fosse diferente. Por exemplo, se o seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, não tivesse convocado uma vigília que poderia gerar um caos, facilitando a fuga. Ou se o próprio Jair não tivesse feito um test drive de fuga de dois dias na Embaixada da Hungria, em fevereiro do ano passado, após ter seu passaporte apreendido.
Ou fugido para a Flórida dois dias antes do final do seu mandato com receio de que viesse a ser penalizado pela articulação golpista e para criar um álibi para o 8 de janeiro; ou ter sido descoberto, em seu celular, uma minuta de um pedido de asilo ao governo Javier Milei, na Argentina.
A justificativa do ex-presidente cola com o bolsonarismo-raiz, que acredita em conspirações envolvendo cavaleiros templários, bilionários esquerdistas, um sósia do Lula e, claro, Leonardo Di Caprio.
Mas para o eleitor que não se define como extremista-raiz, aquele que pesa candidatos pela credibilidade, pela integridade, pela racionalidade? Para esse eleitor, quem ficar ao lado de quem “tava doidão” ao cometer um crime terá problemas.

Bolsonaro disse, na audiência de custódia hoje que teve uma “certa paranoia” de sexta para sábado em razão de medicamentos que tem tomado e que interagiram de forma inadequada. E que não se lembra de ter tido surto dessa natureza em outra ocasião.
Pena, poderia ter dito que estava surtado quando empurrou os brasileiros para o abismo durante a pandemia, o que resultou em mais de 700 mil vidas perdidas. Pelo menos, familiares dos mortos teriam uma justificativa mais aceitável do que “não sou coveiro”.
O futuro candidato que abraçar esse legado vai ter de decidir se responde ao clã ou responde às instituições. Porque o episódio de Bolsonaro vira vídeo, vira meme, vira referência na campanha. E a pergunta não vai desaparecer: “tava doidão” para violar tornozeleira, mas “tava lúcido” para cometer erros ao governar o país e tentar um golpe de Estado?