Sakamoto: Brasil tem ‘Congresso paralelo’, que banca lobby e dita as regras do jogo

Atualizado em 20 de outubro de 2025 às 11:02
Nuvens escuras sobre o Congresso. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Por Leonardo Sakamoto, no Uol

Lobistas, não raro, operam nas sombras, entrando e saindo de gabinetes para defender as necessidades de um grupo que pode pagar bem pelo serviço contra os interesses do restante da população. Esse entra e sai está na concepção de projetos de lei que, meses depois, nascem em forma de nova legislação. Sem que ninguém saiba quem é o pai.

Uma investigação de dois meses de Tiago Mali e Julia Affonso, publicada hoje no UOL, após a análise de 345 mil documentos do Congresso, com a ajuda de um software estatístico, mostra que cerca de 2.000 proposições parlamentares foram escritas por lobistas desde 2019, recebendo o aval de parlamentares da direita à esquerda. Entre eles, o presidente da Câmara, Hugo Motta.

Pressão e articulação para defender os interesses de um grupo social, político ou econômico junto ao Estado existe e sempre existiu em qualquer lugar do mundo. Faz parte do jogo democrático que grupos incidam politicamente, através do diálogo ou da pressão, com governos e parlamentos, pela mudança, manutenção ou julgamento de leis ou a execução de ações que beneficiem seus representados.

O que não faz parte a falta de transparência sobre a atividade, que permite que o interesse de um pequeno grupo se sobreponha às necessidades de um país inteiro sem que o Brasil se dê conta disso. Isso sem falar do envolvimento de somas de dinheiro ou troca de favores para que políticos, juízes, funcionários públicos coloquem o Estado a serviço de quem quer que seja.

No sentido da contracorrente do interesse público, nos últimos anos, gastaram sola de sapato nos corredores do Congresso o lobby das empresas produtoras e comercializadoras de amianto (produto relacionado ao desenvolvimento de câncer), o lobby da indústria farmacêutica contra a quebra de patentes de medicamento para o tratamento de doenças crônicas (o que impede a produção, pelo país, de genéricos com custo muito mais baixo), o lobby dos agrotóxicos (para afrouxar as regras relacionadas ao controle e denominação desses produtos químicos), o lobby das empresas que querem conseguir vantagens com a Reforma Tributária (muitas delas mantendo privilégios que têm hoje), o lobby das corporações que perderam julgamentos no Tribunal Superior do Trabalho e transformaram seus votos vencidos em propostas vitoriosas na Reforma Trabalhista (quem tem poder e dinheiro sempre dá um jeito), o lobby dos super-ricos contrários à tributação de dividendos (ei, super-rico não é você que parcelou seu BYD em 36 vezes, ok?).

Como a atividade de lobby e a função de lobista não são regulamentadas como deveriam no Brasil, é comum membros dos Três Poderes e servidores públicos receberem quem quiserem, da forma que acharem mais conveniente, na surdina, sem que isso passe por uma prestação de contas à sociedade, com agenda pública, nome dos envolvidos, pautas discutidas.

E essa falta de transparência ajuda a criar monstros como os escândalos de corrupção. Com isso, descobrimos determinadas relações espúrias quando elas já causaram prejuízo aos cofres públicos ou fizeram com que a máquina servisse aos interesses particulares de alguém.

Associações empresariais, sociais ou sindicais raramente fazem visitas de cortesia a deputados e ministros do STF. Há interesses envolvidos nessas conversas que deveriam ser expostos à coletividade.

Deputados na Câmara. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Projetos e discussões para regulamentar a atividade no Brasil, alguns beirando o ridículo de se fazer apenas um cadastro e uma carteirinha para identificar o profissional envolvido, já passaram pelo Congresso. Fazer um crachá é uma solução tão boa quanto montar uma comissão para resolver um problema. E, como sabemos, o Brasil adora um crachá. E uma comissão. Porque é a forma de resolver sem resolver nada por aqui.

Defendo há anos, neste espaço, a regulamentação como forma de aumentar a transparência e impor regras para a esbórnia que existe hoje. Regulamentar o lobby significa dizer o que se pode e o que não se pode fazer. E estipular formas de publicizar obrigatoriamente essas ações e encontros. E de punir a omissão de informações.

Um lobista do setor sucroalcooleiro visitou o ministro-chefe da Casa Civil? Que seja colocada na página do ministério o motivo da reunião, os presentes e o que foi discutido e não apenas uma linha de agenda, quando muito.

Um ex-presidente/ governador/ prefeito /senador /deputado /vereador foi recebido por alguém que defendeu algum interesse específico de movimentos sociais ou sindicatos? Que se dê plena publicidade disso. Tire fotos, poste no Insta.

Um lobista de big techs foi tomar chá com biscoitos com deputados para pedir o enterro do projeto que regulamenta o setor? Que fique claro quanto tempo durou e o que foi discutido no encontro além do sabor dos biscoitos servidos no chá, se norte-americanos ou chineses.

Um outro do setor automobilístico conversou com um presidente de comissão da Câmara dos Deputados? Que as respostas para “quem, quando, como, onde, o que, por que e com quem” estejam disponíveis no site do parlamento sem demora.

E se alguém não publicar a informação estará incorrendo em falta grave, passível de punição à empresa, ao grupo representado ou ao político ou funcionário público envolvido. E em caso de desvio de conduta (como presentes e mimos), os envolvidos seriam alvo de investigação, processo público e condenação, sob regras duras.

Hoje, há um entra e sai tão grande de “interesses” nos gabinetes que faz parecer que a única diferença entre “público” e “privado” é que uma é palavra proparoxítona e a outra não.

E, repetindo, isso valeria para todos os setores: empresas, associações, sindicatos, movimentos sociais, organismos internacionais, organizações não-governamentais. Afinal, é nosso interesse que está envolvido e os políticos eleitos com nossos votos e os servidores públicos não têm direito de guardar sigilo sobre isso.

Países como os Estados Unidos autorizam o lobby, mas têm regras específicas sobre o tema. Isso significa que as coisas não descambam para corrupção por lá? Longe disso. Mas a situação fornece, ao menos, instrumentos de fiscalização.

Quem já assistiu ao filme “Obrigado por fumar” (Thank You for Smoking, 2006), que satiriza a indústria do tabaco e as associações de lobby do petróleo ou das armas que atuam nos Estados Unidos, sabe o que é o discurso da defesa do indefensável. Isso não vai deixar de existir, mas deveria, ao menos, ser público.

É cômico ver o discurso cínico do protagonista do filme, mas a história fica trágica quando verificamos que os mesmos discursos são descarregados sobre nós diariamente para justificar muita coisa. Entre elas, a expansão do uso de veneno na produção de alimentos. No Brasil, o lobby dos agrotóxicos é um dos mais pesados. Daria um longa-metragem de “ficção” tão engraçado e trágico quanto o da indústria do tabaco. Financiador não iria faltar.

Ignorar que uma unha espeta a carne, escondendo-a sob a meia e o sapato, não faz ela desencravar. Pelo contrário, infecciona.

Em tempo: o interesse de lobistas pode ser discreto, mas a batalha do lobby nem sempre é. Muitas vezes usam a mídia para tentar convencer que seu interesse é o de todos os brasileiros. Isso quando a própria mídia não é a lobista de seus interesses empresariais, como foi o caso da manutenção da desoneração da folha de pagamento — na qual as empresas de comunicação foram beneficiadas.