
Por Leonardo Sakamoto, no UOL
Enquanto o país celebrava a aprovação da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais pelo Senado, a Câmara decidiu aprofundar o sofrimento de meninas estupradas: aprovou um projeto de decreto legislativo para derrubar regras sobre o aborto legal para crianças e adolescentes.
A ação, chancelada por 317 deputados, tem um objetivo claro e brutal: dificultar a interrupção da gravidez em casos resultantes de estupro. Ela derruba uma resolução aprovada pelo Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) que estabelecia diretrizes para o aborto já garantido por lei a esse grupo. A existência dos parâmetros facilitava a vida das vítimas.
A resolução garantia, por exemplo, que o hospital não poderia criar obstáculos adicionais ao direito já assegurado, como a exigência de exames desnecessários com o fim de postergar o procedimento, aumentando o trauma e os riscos à saúde da vítima. Também afirmava que não havia limite de tempo de gestação para a interrupção e não condicionava o aborto à autorização dos responsáveis. Vale lembrar que muitas crianças ficam grávidas após serem estupradas por membros da família, como pais, tios e avôs, situação que só é descoberta quando a gestação está avançada.
Mas, aparentemente, para uma parcela significativa dos nossos representantes, o sofrimento de uma criança grávida de seu estuprador não é suficiente. É preciso infligir mais dor. É preciso transformar o Estado, que deveria ser seu protetor, em cúmplice do agressor, forçando-a a carregar nas entranhas a lembrança de uma violência brutal.

Sob o disfarce de “defesa da vida”, esses parlamentares cospem na cara da ciência, do direito e da compaixão. Eles sabem bem que a revogação da resolução não vai impedir abortos legais ou ilegais. Pode, sim, diante de dificuldades impostas, empurrar meninas desesperadas às mãos de açougueiros, a métodos caseiros ou à perpetuação de um ciclo de violência que as marcará para sempre.
Trata-se de tortura institucionalizada. É tentar obrigar uma criança a um parto que seu corpo pode não suportar e a encarar diariamente a lembrança do estupro. Tudo isso chancelado por um Estado, em tese laico, que, também em tese, deveria zelar pelo bem-estar de seus cidadãos, especialmente os mais vulneráveis.
A mensagem que a Câmara mandou hoje é: para meninas pobres, vítimas de violência sexual, o Estado oferece apenas mais violência. O projeto, que avança sob os aplausos de setores fundamentalistas, não salva vidas. Apenas nega o alívio e o cuidado que a lei e a medicina lhes garantem. É uma crueldade que será lembrada e cobrada, e que mancha de sangue e hipocrisia o plenário da Casa.
Ao Senado cabe não aprovar o retrocesso. E ao STF, reconhecer que o Poder Executivo, ao qual o Conanda está vinculado, tem competência para resoluções como essa.
Por fim, a votação da Câmara foi uma clara resposta ao voto do ministro Luís Roberto Barroso a favor da ampliação do direito ao aborto, último ato de seu mandato no STF. Para bater no tribunal e fazer média com seus eleitores, a Câmara joga com a vida de meninas. Parabéns pela maturidade.