Sakamoto: Criança pobre vira caixa eletrônico para banco lucrar sob benção do Estado

Atualizado em 17 de novembro de 2025 às 21:51
Crianças de costas. Foto: Reprodução

Por Leonardo Sakamoto, no UOL

Enquanto a lei fala em proteção integral da infância, o Estado autorizou que bancos fincassem máquinas de fazer dinheiro em cima do benefício de crianças pobres com deficiência. É o capitalismo financeiro encontrando o berçário, com chancela do setor privado e do poder público.

Reportagem publicada hoje no UOL por Saulo Pereira Guimarães aponta que o INSS liberou em nome de crianças R$ 12 bilhões em empréstimos consignados. Uma regra baixada pelo governo Bolsonaro, em agosto de 2022, permitiu que contratos fossem fechados por qualquer representante legal em nome delas. Ela foi anulada em agosto deste ano, mas muitas crianças e adolescentes se lascaram antes disso.

Clara, 7 anos, não sabe escrever o próprio nome, mas já deve R$ 38.278,80. A cada mês, R$ 540 são arrancados do seu BPC de um salário mínimo que ela recebe por ter síndrome de Down, dinheiro que deveria pagar comida, remédio, aluguel. Maria, 11 anos, autista em grau severo, teve um empréstimo de mais de R$ 13 mil feito pela mãe, dependente química, que, depois, sumiu. O dinheiro não foi usado para ela e, meses depois, a menina foi encontrada em situação de abandono nas ruas de São Carlos. Em outro caso, uma criança nasceu em maio e, em dezembro, já tinha uma dívida de R$ 15.593 em seu nome. Todos os casos são relatados por Saulo em sua reportagem.

A criatividade do sistema não para no consignado básico. Vieram versões turbinadas em formato de cartão de crédito, também debitados direto no benefício. Transformam, assim, a proteção social em carteira de crédito cativa, com risco praticamente zero para a instituição financeira e total para as crianças.

Para que isso fosse possível, não bastou ganância desses bancos. Foi preciso uma escolha política. A Medida Provisória 1.106, de 2022, abriu a porteira ao autorizar que beneficiários comprometessem até 45% do que recebem com consignados e produtos financeiros. A justificativa oficial era “ampliar o acesso ao crédito” para famílias vulneráveis. Na prática, ampliou o acesso dos bancos ao pouco dinheiro que sustenta essas famílias. É como jogar um náufrago ao mar com um colete salva-vidas e, em seguida, hipotecar o colete.

A permissão de crédito consignado debitado de benefício social, tanto do BPC quanto do Bolsa Família, é um erro cavalar – e tenho dito isso aqui nos últimos três anos. Os dois são a garantias de um mínimo para as pessoas sobreviverem. Com as parcelas sendo debitadas na folha de pagamento, isso deixa de ser possível. É uma bomba relógio que estoura a dignidade dessas pessoas.

Criança segura cartão do bolsa família. Foto: Reprodução

Mas sem a conivência de bancos e instituições financeiras nada disso aconteceria. Empresas que enchem a boca para falar de compliance e de ética não implementam processos de análises que evitem sacanagens contra crianças e adolescentes. Até porque, do jeito em que está, ganha-se mais.

Governos passam, presidentes do INSS caem, normas são revogadas. Ótimo. Mas para Clara, Maria, milhares de crianças (há 763 mil empréstimos consignados ativos para menores de idade) o futuro já foi parcialmente sequestrado. O Estado que deveria garantir o direito à infância permitiu que esse direito fosse fatiado em dezenas de prestações, com débito automático.