Sakamoto: Criticar 120 mortes só é ‘defender bandido’ em uma sociedade doente

Atualizado em 30 de outubro de 2025 às 10:31
Corpos retirados do Complexo da Penha. Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Por Leonardo Sakamoto, no Uol

Após os 120 mortos na operação policial no Alemão e na Penha, no Rio de Janeiro, um setor extremista da sociedade começou a surfar em cima dos cadáveres, tentando fazer crer que qualquer crítica à quantidade de óbitos deixados pela Operação Contenção é uma defesa de bandidos. Quando, na verdade, é uma defesa da vida, seja de policiais honestos, seja de moradores de comunidades, e do Estado democrático de direito. É básico, mas, por isso mesmo, precisa ser repetido.

Afinal, uma operação para cumprir 100 mandatos de prisão terminar com 120 mortos é sinal de fracasso do poder público. A menos que o motivo da operação fosse mais político e eleitoral do que judicial.

Moradores levando dezenas de corpos para a praça pública é uma cena de um país em guerra civil. É a imagem mais crua do colapso do pacto social, onde quem deveria proteger é incapaz de planejar uma ação em que a inteligência asfixie as receitas e as vendas da criminalidade antes de a força bruta tentar retomar o território.

E, sim, policiais se lascam por conta dessa política. Como já disse aqui, é importante ressaltar que muitos dos que dizem defender a polícia estão pouco se lixando para os policiais. Os quatro agentes mortos eram trabalhadores, de uma profissão precarizada, que deveria receber salários mais altos, mais equipamentos, formação continuada e de qualidade. Uma profissão que coloca seus trabalhadores em risco desnecessário por não investir em inteligência.

Considerando que policiais, comunidade e traficantes, não raro, são de uma mesma origem social e, não raro, da mesma cor de pele, é uma batalha interna. E muita gente torce para que os conflitos fiquem contidos naquele território, gerando falsa sensação de segurança na parte “civilizada” da cidade. Os mais ricos sentem, sim, a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres e os policiais são obrigados a viver no dia a dia.

Ao se criticar execuções públicas de pessoas por parte de agentes do Estado (e chegam relatos de cadáveres com tiros na nuca), não defendemos “bandidos”, mas sim esse pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Em suma, não entregamos para o Estado o poder de usar a violência como último recurso a fim de proteger os cidadãos para que ele a use como padrão de solução de todos os conflitos. Porque isso, mais cedo ou mais tarde, respinga de volta.

A polícia, um dos braços armados do Estado, deve seguir as leis e não usar os mesmos métodos dos bandidos sob a pena de cometer injustiças e gerar filhotes monstruosos. Como as milícias que mantêm o poder político ou econômico em comunidades, decidindo quem morre e quem vive, tornando-se piores que outras formas de crime organizado.

Parte da população, cansada da violência, apoia desvios de Justiça por parte do Estado. E festeja mortes aceitando sem questionar o julgamento sumário trazido pela bala: se a pessoa morreu pelas mãos da polícia, é porque era culpada de algo.

O impacto de tudo isso se faz sentir no dia a dia do país. E nem estou tratando da forma como a polícia trata manifestações ou protestos, mas das periferias das grandes cidades e dos grotões da zona rural, em que o Estado aterroriza parte da população (normalmente mais pobre e negra) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica e branca). Chacinas, urbanas e rurais, não raro, são encaradas como um serviço sujo que parte da sociedade deseja. Uma “limpeza social” das “classes perigosas” e dos “entraves para o progresso”.

Ao invés de pedir ações estruturais que melhorem a qualidade de vida nas comunidades, garantam educação e emprego aos jovens, remunerem bem e garantam dignidade às forças policiais, bloqueiem os bens e o dinheiro dos criminosos, prendam políticos e policiais envolvidos com o crime, desmantelem os esquemas de lavagem de dinheiro, entre outras medidas preventivas que podem garantir um país mais seguro, parte da sociedade, através das redes sociais, pede mais cadáveres, defende linchamento, pena de morte, crianças na cadeia, murar comunidades e mais armas, muitas armas.

A narrativa oficial, sempre previsível, fala em “intenso tiroteio” e “grupos criminosos”. É uma linguagem que busca anestesiar a consciência pública, tentando vender uma política de segurança fracassada como sucesso. Mas quantos desses eram efetivamente criminosos em confronto?

Quantos eram trabalhadores, jovens, mães, pais, pegos no fogo cruzado de uma ação que tratou todo um território como zona inimiga?

Novamente, para quem desligou o bom senso: ninguém está defendendo o crime, muito menos sequestradores, ladrões, traficantes e milicianos. Boa parte da população, apavorada pelo discurso do medo, mais do que pela violência em si, tem adotado a triste opção de ver o Estado de direito com nojo.

Com essa montanha de mortos, o governador Cláudio Castro (PL) ultrapassa o Massacre do Carandiru (em 1992, 111 presos foram mortos na extinta casa de detenção do Carandiru, na zona norte de São Paulo, um evento que cravou uma ferida profunda na consciência nacional sobre o Estado que mata) sem garantir que a vida no Rio ficará mais segura.