Sakamoto: Dosimetria é mais eficaz que PCC e CV para tirar criminosos da cadeia

Atualizado em 14 de dezembro de 2025 às 8:51
Presidente da Câmara dos Deputados, deputado Hugo Motta, coloca em pauta o PL da Dosimetria durante Sessão Plenária da Câmara dos Deputados
Presidente da Câmara dos Deputados, deputado Hugo Motta, coloca em pauta o PL da Dosimetria durante Sessão Plenária da Câmara dos Deputados – Ton Molina/Estadão Conteúdo

Por Leonardo Sakamoto

O PCC, o CV e outras facções criminosas, vez ou outra executam seus planos mirabolantes para tentar libertar criminosos das prisões. Quando conseguem, retiram algumas poucas almas. O crime organizado tem muito a aprender com o Congresso Nacional, que no intuito de reduzir a pena dos que tentaram golpe de Estado, também pode tirar da cadeia quem cometeu crimes comuns com violência ou grave ameaça. E de baciada. É a promoção da xepa do final do ano: peça para reduzir a pena de um ex-presidente e de generais e ganhe também a de quem cometeu crimes sexuais.

Milhares de pessoas vão hoje às ruas em atos de todo o país contra o PL da Dosimetria, que, sob a justificativa de beneficiar os peixes pequenos do 8 de janeiro de 2023, quer mesmo é tirar Jair Bolsonaro, generais estrelados e outros artífices da tentativa de golpe do xilindró. Em uma clara afronta à Justiça, que ainda nem terminou os julgamentos da intentona.

O caminho adotado para isso na Câmara dos Deputados foi aplicar mudanças na progressão do cumprimento da pena – o que, na prática, encurta a estada na prisão não apenas de quem tentou golpe de Estado, mas de quem foi condenado por atos libidinosos, corrupção, coação de testemunhas, crimes ambientais, lavagem de dinheiro, atentados contra serviços públicos e contra a organização do trabalho, entre outros.

Não é detalhe. É o coração do projeto.

Com isso, parlamentares mostram que nunca defenderam cadeia dura para bandidos, mas para um tipo de bandido, aquele que não é de sua estimação.
As ruas hoje não pedem vingança. Pedem limite. Pedem que o Congresso não transforme a lei penal em moeda de troca para resolver o problema jurídico de um ex-presidente condenado por tentativa de golpe. Pedem que a exceção não vire regra, nem a regra vire piada.

Se o PL da Dosimetria passar, não será um acidente legislativo. Será uma escolha consciente: soltar Bolsonaro mesmo que, para isso, seja preciso abrir a porta da cadeia para quem colocou a vida de outras pessoas em risco. E ensinar, mais uma vez, que no Brasil a lei pode até ser cega, mas, quando convém aos poderosos, ela também aprende a fechar os olhos.

Por fim, um desabafo: tem sido comovente a quantidade de deputados e senadores citando que a massa que participou do 8 de janeiro de 2023 precisa de um tratamento diferenciado. Tentam fazer crer que foram condenados por pichar estátua ou furtar uma réplica da Constituição, quando esses atos apenas colocaram essas pessoas na cena do crime. Punição por pichar estátua é irrisória, o grosso foi por atacar as sedes dos Três Poderes e ajudar em tentativa de golpe de Estado.

Muitos dos que, nas redes e no parlamento, dizem que isso é injusto bateram palmas quando um policial militar matou com 11 tiros pelas costas um jovem que furtou pacotes de sabão líquido em São Paulo. A impressão é que a extrema direita descobriu a ideia de dosimetria de pena somente após a tentativa de golpe de Estado. Mas quem já furtou comida ou bens de valores insignificantes tem outra impressão: que a decisão sobre a pena depende da cor da pele e da classe social.

Para que a discussão sobre tamanho de penas não seja hipócrita, precisamos debater o que acontece com na sociedade e que boa parte dos autointitulados homens e mulheres de bem não dá a mínima. Pois há uma parcela que acha injusto punir alguém por tentativa de golpe de Estado, mas aceita a pena de morte informal a quem furta Omo líquido.São muitos os casos de pessoas condenadas por roubar comida. Isso quando não rola pena capital. Dois homens foram torturados por cinco seguranças do supermercado UniSuper, em Canoas (RS), diante do gerente e do subgerente da loja, após tentarem furtar duas peças de carne. Vítima das piores agressões, um homem negro foi colocado em coma induzido no hospital com fraturas no rosto e na cabeça. E um tio e um sobrinho, que furtaram carne de uma unidade do Atakadão Atakarejo, em Salvador, foram encontrados mortos com sinais de tortura e marcas de tiro.

Ninguém está defendendo quem erra ou comete crimes. O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos tornando ao acreditarmos que punições severas para coisas ridículas (mesmo reincidentes) têm função pedagógica enquanto defende-se impunidade para ataques à democracia. Desde quando a República passou a valer mais do que acém com osso?

Dois homens furtaram um macaco velho de carro, dois galões de plástico vazios e menos de um litro de óleo diesel e foram condenados, um a 10 meses e 20 dias, outro a 2 anos e 26 dias de prisão. A 1ª Turma do STF, a mesma que julgou os líderes da conspiração golpista, rejeitou, em 2023, a aplicação do princípio da insignificância aos dois em itens avaliados em R$ 100 e manteve as condenações.

Não há registro de protestos da extrema direita contra a decisão.

Publicado originalmente no Uol