Sakamoto: Fuga de lancha repete ‘Vale Tudo’, mas Marco Aurélio era competente

Atualizado em 1 de setembro de 2025 às 22:36
Rafael, sócio-administrador a F2 Holding Investimentos. Foto: Reprodução/TV Globo

Por Leonardo Sakamoto, no UOL

O empresário do setor financeiro Rafael Gineste tentava fugir de lancha quando foi preso pela Polícia Federal, em Bombinhas (SC), na megaoperação contra o PCC. Mais de 36 anos separam essa cena patética da fuga do Brasil de Marco Aurélio, personagem vivido pelo ator Reginaldo Faria, na primeira versão de Vale Tudo, transmitida pela Rede Globo (1988-1989).

A diferença é que o vilão da novela usou um jato particular e conseguiu se escafeder, enquanto, na vida real, o semovente passou vergonha. Sim, a História se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa, disse uma vez o incompreendido sábio de barba. Mas, no caso brasileiro, às vezes ela já nasce como farsa para, daí, se transformar em tragédia da vida real.

E se o personagem fictício que parecia real era acusado de montar esquemas para desviar recursos em benefício próprio, o personagem real que parece fictício é sócio-administrador da F2 Holding Investimentos e, segundo os investigadores, seria integrante do núcleo financeiro da organização, que movimentava valores usando empresas de fachada.

Vale Tudo, cujo remake está em cartaz, veio a público pela primeira vez quando o país vivia um momento turbulento de sua história, em meio a uma Assembleia Constituinte que tentava refundar a democracia após 21 anos de uma ditadura de rapina dos verde-olivas e seus apoiadores parasitas da iniciativa privada.

“Vale a pena ser honesto no Brasil?” era a grande pergunta da novela.

A reflexão sobre a atualidade dessa questão deve ser feita à luz da Operação Carbono Oculto – que escancarou a infiltração do Primeiro Comando da Capital no coração do sistema financeiro nacional, a região da avenida Faria Lima, em São Paulo. Profissionais do mercado financeiro que fecham os olhos para a origem duvidosa dos recursos ou que se tornam especialistas em burlar a fiscalização ajudam a responder a pergunta.

Agentes da Polícia federal, em conjunto com as receitas federal e estadual fizeram buscas e apreensões em endereços na Faria Lima. Foto: Werther Santana/Estadão

A tentativa de fuga do empresário é a materialização de um roteiro que uma certa elite acredita ser seu direito divino. Quando a conta chega, quando a farsa é descoberta, a reação não é enfrentar as consequências, mas sim reafirmar seu status. Acredita-se digna de uma carta branca, de um tratamento especial, de uma saída pela porta dos fundos. Ou, no caso, pela garagem da marina.

O meio de transporte mudou, a coreografia da fuga se adaptou aos tempos, mas a essência do personagem é a mesma: a convicção de que a riqueza compra não apenas conforto, mas impunidade. É a velha e podre mentalidade de que o Brasil é um grande vale-tudo, onde os que estão no andar de cima podem ditar suas próprias regras.

Mas eis onde a realidade, felizmente, se descola da ficção. Na novela, o vilão consegue escapar. Na vida real, a lancha foi interceptada e o empresário foi conduzido para responder pelos seus atos. É um final mais esperançoso, ainda que insuficiente para um país que há tanto tempo assiste a repetições desse mesmo episódio.

A interceptação da lancha é mais do que a prisão de um investigado, é uma metáfora poderosa. Simboliza o momento em que o castelo de areia do privilégio é varrido pela maré da institucionalidade.

Amanhã começa um julgamento que trata exatamente disso. Esperemos que quem tentou um golpe de Estado tenha seu dia no tribunal. E enfrente as consequências. Sem fugir de avião, de barco ou no porta-mala de um carro.