Sakamoto: governo do Rio ainda precisa provar que polícia não matou inocentes

Atualizado em 4 de novembro de 2025 às 11:12
Fabiano Rocha/Agência O Globo

Por Leonardo Sakamoto, publicado no UOL:

Aviso: Criticar governos quando eles produzem grandes quantidades de mortes não é defesa de bandidos, mas de policiais e de moradores de comunidades, que são colocados em risco desnecessário quando o poder público opta por uma política que privilegia a porrada em detrimento ao estrangulamento de grana, drogas e armas. Bandido bom é bandido processado, condenado e preso.

Enquanto o governo Cláudio Castro não apontar a razão de cada uma das mortes ocorridas durante a operação nos complexos da Penha e do Alemão, há uma semana, não é possível afirmar que a polícia não matou inocentes. Pois enquanto o Congresso Nacional e os eleitores não empurrarem o país para a escuridão, o cano do fuzil da polícia não desempenha o papel de promotor, juiz e carrasco.

Até agora, 115 cadáveres foram identificados, e metade não tinha mandado de prisão ou de busca e apreensão ou não havia informação suficiente sobre eles. Eu já havia escrito aqui que a existência de antecedentes criminais não condena ninguém à morte, justificando uma bala na nuca ou no peito. O mesmo vale para a inexistência de ficha criminal ou de mandados de prisão.

Com isso, o governo do Rio ainda não provou que operação policial não matou inocentes, ou seja, pessoas que não estavam em combate com as forças de segurança. E também mostrar que não executou criminosos já rendidos. E o ônus da prova é de quem mata, não das famílias dos mortos.

A polícia também afirma que 95% dos 115 apresentavam ligação comprovada com o Comando Vermelho, mas a “inteligência” usou até emoji em rede social para apontar vínculo com o crime organizado.

Reportagem de hoje da Folha de S.Paulo mostra que a polícia também destacou como suspeito o fato de um dos mortos, que não tinha antecedentes, não ter postagens desde 2022 – o que indicaria tentativa de apagamento de atividades criminais. Outro por ter uma foto com roupa camuflada foi ligado ao tráfico. E mais um por estar aparecendo segurando uma arma.

Se esses elementos são suficientes para conectar alguém a uma organização criminosa armada, então a Polícia Federal e Procuradoria-Geral da República precisam, urgentemente, ampliar o escopo da investigação, do indiciamento e da denúncia de envolvidos com os atos golpistas para incluir quem postou emoji de apoio ao golpe, usou camisas da seleção segurando arma e, claro, deletou postagens ou deixou de publicar no período golpista. Por essa lógica, teríamos dezenas de milhares de novos suspeitos.

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (RJ). Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Em uma sociedade em que o devido processo legal e o Estado democrático de direito são respeitados, faz-se necessário mais do que isso para justificar um cadáver.

O governo do Rio já havia dito, na última sexta (31), que ao menos 78 dos 121 mortos na operação nos Complexos da Penha e do Alemão, na última terça (28), tinham “relevante histórico criminal”. Diante disso, quem se enxerga como um democrata precisa fazer uma pergunta: e daí? Temos ex-presidente da República com “relevante histórico criminal”, condenado por tentar matar a democracia com golpe de Estado usando uma organização criminosa armada. Mas ninguém em sã consciência justifica pena capital ou execução para esses crimes. Por que então isso vale para outros?

Após a Chacina do Jacarezinho, em maio de 2021, quando 27 civis e um policial foram mortos em uma ação violenta do poder público, o governo Cláudio Castro correu para dizer que não havia suspeitos, apenas criminosos, homicidas e traficantes. Cinco meses depois, o Ministério Público discordou, apresentando denúncia contra policiais por execução e manipulação da cena do crime.

O governador vai ter que se esforçar mais para provar que não emboscou e executou ninguém, ao contrário do que está parecendo. Ele ganhou seguidores nas redes, votos e popularidade, pois deu sangue a uma população cansada em ver derramamento de sangue – mesmo que a operação não vá tornar o Rio mais seguro. Ainda assim, precisa responder à Justiça.

Ele sabe que está produzindo um espetáculo, pois mais macabro que seja. Entende-se a razão eleitoral dele. Mas não deixa de ser constrangedor ver o público batendo palma.

Estive nos últimos dias no Rio e conversei com muita gente sobre a operação, procuradores da República, defensores públicos, sociedade civil e gente que mora na Penha e no Alemão e conhecia vítimas.

Um deles, um trabalhador da segurança privada, frisou algo que as pesquisas de opinião sobre o assunto não são capazes de captar. Ouvi a mesma ideia de outros dois moradores que trabalham na parte rica da cidade: “Olha, eu entendo que a polícia precisa entrar na comunidade, que seja dura. Mas o que mais doeu foi ver quem mora na praia comemorando as mortes. Celebrando mesmo, sabe? E a violência nem chega neles como bate do lado da minha casa. Quando é que a gente desceu tão fundo?”.