
Aviso necessário a quem leva o Tico e o Teco para passear apenas aos finais de semana: este texto não “defende bandidos”, mas apenas reafirma a obviedade de que contagem de corpos não é indicador de êxito em segurança pública. Pelo contrário: atesta a incompetência em combater o crime organizado.
Uma ação policial contra o Comando Vermelho nos complexos do Alemão e da Penha deixou hoje, ao menos, 64 pessoas mortas no Rio de Janeiro. Ultrapassando, dessa forma, os 28 mortos da Chacina do Jacarezinho, em 2021, e se torna a operação mais letal da história do estado.
Fincando sua bandeira no cume de uma montanha de mortos e feridos, entre criminosos, policiais e civis que não tinham nada a ver com a história, o governador Claudio Castro (PL) tenta afastar a imagem de incompetência, corrupção e promiscuidade com o crime organizado que o estado cultiva sobre a segurança pública. Pode funcionar, porque tem sempre um chinelo velho para um pé cansado. Mas muita gente vai perceber que a operação não vai mudar o quadro.
Uma operação que termina com mais de 60 mortos e trata comunidades com milhares de moradores como campos de guerra inimigos é um fracasso retumbante. Demonstra falta de inteligência do Estado, em todos os sentidos.
Como não temos um trabalho de inteligência eficaz, com integração das bases das polícias e cruzamento de dados de segurança pública, que torne possível cortar o fornecimento de armas ilegais, bloquear a movimentação financeira dos envolvidos, atingir os financiadores do crime organizado (que, não raro, moram em bairros de ricos) e localizar e isolar criminosos, a alternativa adotada é ir para a porrada, matando e morrendo. Muito por culpa dos governos estaduais, que torcem o nariz para a integração com o sistema federal.
Isso passa uma sensação de falsa segurança a parcelas das classes média e alta, mostrando que o governo está fazendo algo. Mesmo que esse algo seja inócuo. Foi o mesmo que aconteceu com a intervenção do Exército na segurança pública do Rio, durante o governo Michel Temer (comandada, aliás, pelo golpista general Braga Netto), depois com o ex-governador do Rio, Wilson Witzel, que chegou a pregar a execução sumária de suspeitos, e agora com o governador Cláudio Castro e suas chacinas em série.

Faz-se necessário um trabalho de quimioterapia sobre o crime organizado, asfixiando-o através da ação contra as rotas de drogas e o fornecimento de armas, atuando para o sequestro de bens e o bloqueio de recursos, garantindo a prisão de políticos que beijam na boca do crime organizado, sejam traficantes, milicianos ou traficantes milicianos. Depois, em um segundo momento, com as organizações criminosas enfraquecidas, uma ação direta para retomada de territórios é mais fácil, desde que o Estado resolva entrar junto, com políticas públicas para a população local.
Mas o Rio segue insistindo na porrada, mandando policiais matarem e morrerem em conflitos que poderiam ser minimizados.
Ressalte-se, aliás, que muitos dos que dizem defender a polícia estão pouco se lixando para os policiais. Eles também são trabalhadores, de uma profissão precarizada, que deveria receber salários mais altos, mais equipamentos, formação continuada e de qualidade. Uma profissão que coloca seus trabalhadores em risco desnecessário por não investir em inteligência. Ao menos quatro policiais morreram na ação do Rio de hoje.
Parte da população, cansada da violência, apoia ações como essa por parte do Estado. E festeja mortes aceitando sem questionar o julgamento sumário trazido pela bala: se a pessoa morreu pelas mãos da polícia é porque era culpada de algo. Postagens como “se levou bala, era bandido” circulam novamente nas redes.
E, novamente, para quem desligou o bom senso: ninguém está defendendo o crime, muito menos sequestradores, ladrões e traficantes. Mas boa parte da população, apavorada pelo discurso do medo, mais do que pela violência em si, tem adotado a triste opção de ver o Estado de direito com nojo. Dando espaço para ações pirotécnicas em contraponto à necessidade de aprovar leis no Congresso Nacional contra facções.
Ao invés de pedir ações estruturais que melhorem a qualidade de vida nas comunidades, garantam educação e emprego aos jovens, remunerem bem e garantam dignidade às forças policiais, entre outras medidas preventivas que podem garantir um país mais seguro, parte da sociedade, através das redes sociais, pede mais cadáveres, defende linchamento, pena de morte, crianças na cadeia, murar comunidades e mais armas, muitas armas.
Parece um pesadelo do qual não conseguimos acordar. E parte da sociedade definitivamente não quer acordar.
Ontem, a montanha tinha 28 corpos. Hoje, mais de 60. Amanhã, quem sabe? No Rio, o céu é o limite. Ou o inferno.
Publicado originalmente no UOL