Sakamoto: Há esquerda que não entende crise climática e direita que não se importa

Atualizado em 27 de outubro de 2025 às 10:57
Incêndio ilegal em Sinop, no Estado de Mato Grosso. Foto? Carl de Souza/AFP

Por Leonardo Sakamoto, no UOL

Os ataques proferidos contra quem discorda da abertura de uma nova província de exploração de petróleo na margem equatorial amazônica mostram que há progressistas que fecham com o padrão de desenvolvimento em voga desde a ditadura. É direito deles. Mas, às vésperas da COP 30 — a cúpula da ONU sobre o clima, que será realizada em Belém, de onde escrevo este texto —, faz-se necessária uma crítica a uma visão anacrônica de mundo, que está lascando a vida dos mais vulneráveis sob a justificativa de estar garantindo liberdade a eles.

Toda mudança leva a um enfrentamento. No caso da questão ambiental, por exemplo, há uma disputa sendo travada entre progressistas, inclusive via mídia. O discurso de que o desenvolvimento é a peça-chave para a conquista da soberania (com o que concordo) e que, portanto, deve ser obtido a todo custo (do que discordo) tem sido usado por quem diz amém à política de petróleo adotada pelo governo federal. Isso mantém viva a ideia de que é necessário sacrificar peões para ganhar o jogo, em vez de rediscutir o modo de produção como um todo. Os mesmos peões, aliás, que a própria esquerda prometeu defender.

Importante lembrar que “capitalismo verde” é banqueiro coberto com tinta guache no carnaval. Dá para obter concessões com muita pressão, mas o principal causador de impactos ainda é o próprio sistema que, diante da possibilidade de ganhos, vai tentar realizá-los o quanto antes — mesmo que isso cause mudanças climáticas. Afinal, a ideia de futuro é uma abstração.

Os problemas que enfrentamos hoje são, sim, decorrência de um modelo de desenvolvimento que, enquanto explora o trabalho, concentra a renda e favorece classes abastadas, deprecia a coisa pública (quando ela não se encaixa em seus interesses) ou a privatiza (quando ela se encaixa).

Movimentos, coletivos e organizações sérias que atuam nesse campo defendem que o crescimento não pode ser um rolo compressor passando por cima de pessoas. Por suas ações, que impedem um laissez-faire generalizado, são taxados de entreguistas e de fazerem o jogo do capital internacional. Presenciamos isso nas críticas levantadas contra os que protestaram contra os impactos da hidrelétrica de Belo Monte, nos impropérios lançados às comunidades que reclamaram da forma como estava sendo feita a transposição de parte das águas do rio São Francisco e, agora, com a questão da exploração de petróleo na costa amazônica do Amapá.

É claro que os países ricos querem que nós arquemos com o ônus da preservação do planeta. O mercado de carbono, na prática, é isso: compram-se créditos de terceiros (que vão adotar práticas ou projetos que absorvam carbono da atmosfera) para que eles possam continuar poluindo. Ao mesmo tempo, esses países querem se beneficiar do alargamento da já grande distância de desenvolvimento entre o centro e a periferia, quando deveriam estar injetando dezenas de bilhões de dólares, sem cobrar, para a transição energética da periferia.

Independentemente disso, o atual modelo, em plena vigência no Brasil, tem um potencial destruidor muito grande, além de ser extremamente concentrador. Ou seja, o resultado da pilhagem dos recursos naturais e do trabalho humano — a humanidade segue tendo o extrativismo como seu grande modelo —, mantendo o padrão adotado até aqui, continuará nas mãos de poucos, sejam eles brasileiros ou estrangeiros. Distribuição real, inclusive de justiça, é uma ideia que pouco se ouve.

Vale lembrar que aqueles que mais contribuem para o equilíbrio ambiental são os mais atingidos pela mudança climática: indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais, além de mulheres e trabalhadores pobres — que pouco lançam carbono na atmosfera.

Como se resolve esse enfrentamento de ideias sobre o modelo de desenvolvimento a ser adotado? Pelo diálogo, franco e direto, baseado em dados (como aquele trazido pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, de que o mundo não vai conseguir cumprir as metas do Acordo de Paris) e na necessidade de atuarmos em mitigação e adaptação, além de indenizar perdas e danos. Ou seja, que ajustemos o termostato do planeta para “gratinarmos os idiotas lentamente”.

Mas esse diálogo tem se mostrado infrutífero. Muitos repetem que precisamos explorar petróleo sob a desculpa de garantir a soberania, pois, se não fizermos isso, os estrangeiros irão invadir e fazer o mesmo. Qual a diferença entre isso e a justificativa para desmatar a Amazônia durante a ditadura, escravizando trabalhadores e expulsando comunidades tradicionais, para que ela não fosse “internacionalizada” à força?

O mais irônico é que a Amazônia já foi internacionalizada. Não através de forças armadas ou ONGs, mas de empresas transnacionais que desrespeitam leis ambientais e trabalhistas, controlando a terra e a água e enviando lucros ao exterior.

A meu ver, a solução acabará ocorrendo por meio de uma renovação geracional, apostando que uma nova geração, que percebeu que estamos fritos (literalmente), veja as prioridades de outra forma.

Tudo o que foi discorrido aqui, é claro, diz respeito ao campo democrático interno. Agora, como diria o professor Garrincha, falta combinar com o inimigo. Porque temos o negacionista light, muito reconhecido por frases como “as mudanças climáticas são reais, mas ainda dá tempo de ganhar dinheiro antes de alterar o modelo de desenvolvimento”. Mas temos também o negacionista raiz, cujo grupo político estava desgovernando o Brasil até 2022 e que tentou, aliás, um golpe de Estado para dar continuidade ao serviço.

Os direitos trabalhistas, o SUS, os pisos da educação e da saúde, os benefícios sociais são vitórias não só da esquerda, mas das forças democráticas desde a criação da República. Construímos um Estado de bem-estar social, mesmo que incompleto. Mas a pressão do outro lado é forte e vem conquistando vitórias.

Se a esquerda quiser seguir relevante num país atravessado por desigualdade e colapso climático, precisará renovar-se por dentro. O que significa menos fetiche pelo Estado como fim em si, mais organização social viva; menos “desenvolvimentismo de sacrifício”, mais justiça climática e redistribuição real; menos trincheira programática datada, mais disposição para aprender, desaprender e construir respostas ancoradas em dados, participação direta e defesa dos bens comuns.

Não se trata de conciliar o inconciliável, mas de decidir qual horizonte queremos e construir um ambiente político para colocar essa decisão em marcha: a repetição estéril que conserva a pilhagem (pintada de verde quando convém) ou a coragem de fundar um novo contrato social, democrático, plural e cuidadoso com gente e território. Abrir uma nova província petrolífera é bobagem em um momento em que a verdadeira estratégia para ganhar dinheiro pode ser deixar o petróleo guardado no subsolo.

A questão da sucessão da esquerda não é apenas permitir que novas lideranças floresçam, mas permitir que as ideias evoluam. A janela é curta. Ou inauguramos esse ciclo com generosidade geracional e imaginação política, ou assistiremos, de novo, ao futuro ser decidido sem o povo — e possivelmente contra o povo.

Por fim, os países ricos que se beneficiaram do carbono queimado desde o início da Revolução Industrial precisam, como escrevi acima, bancar a transição do resto do mundo. Se o Brasil reduzir seu desmatamento, conseguirá cumprir suas metas climáticas. Então, não estou dizendo que seremos o vilão do mundo por abrir uma nova província petrolífera. Mas deixaremos de ser o líder que o planeta precisa, sendo apenas mais um, marchando com os outros países rumo ao abismo.