
Por Leonardo Sakamoto no Uol
A Justiça do Trabalho determinou, nesta terça (2), que o governo federal inclua a JBS Aves e outras duas empresas no cadastro de empregadores responsabilizados por trabalho análogo ao de escravo, a chamada “lista suja”. A gigante internacional teve sua entrada na relação suspensa por decisão do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, contrariando a área técnica. À decisão, cabe recurso.
Assinada pela juíza Katarina Roberta Mousinho de Matos, da 11ª Vara do Trabalho de Brasília, ela atendeu a pedido do Ministério Público do Trabalho, ordenando que a União reinsira a JBS Aves, a Santa Colomba Agropecuária S.A. e a Associação Comunitária de Produção e Comercialização do Sisal (Apaeb) em até cinco dias, sob pena de multa diária de R$ 20 mil. A Apaeb já estava na lista, contudo, e seria retirada pela decisão de Marinho.
Também foram expedidos ofícios ao Ministério Público Federal, ao Tribunal de Contas da União e à Controladoria-Geral da União para apuração de eventuais responsabilidades, como improbidade administrativa, crime de desobediência e desvio de finalidade no exercício do poder de avocação por parte do ministro.
O Ministério do Trabalho não respondeu à solicitação da reportagem até a publicação deste texto, que será atualizado assim que um posicionamento for recebido.
A ordem judicial ocorre após Marinho ter avocado (chamado para a sua decisão) processos administrativos já concluídos pela fiscalização, impedindo a publicação dos nomes das empresas no cadastro. O movimento foi classificado pela magistrada como “desvio de finalidade” e “regime de exceção para grandes empresas”.
Segundo ela, documentos anexados aos autos mostram que a própria Advocacia-Geral da União (AGU) reconheceu “indícios robustos” de escravidão envolvendo trabalhadores da JBS Aves, mas ainda assim recomendou nova análise por causa da “repercussão econômica” do caso.
A decisão cita ainda que o mesmo procedimento (avocação após o encerramento técnico dos processos) foi adotado com a determinação de “dispensa de publicação”, o que, segundo a magistrada, visou blindar politicamente o governo de críticas e impedir o controle social e judicial, impondo um sigilo injustificável que afronta o princípio da publicidade.
“Ao acolher o pedido do MPT, a Justiça do Trabalho deixou claro que o ministro do Trabalho não pode utilizar avocações como instrumento de blindagem de grandes empresas flagradas submetendo trabalhadores a condições análogas às de escravo, excluindo-as da ‘lista suja’, afirmou Luciano Aragão, um dos procuradores do trabalho que assinam a ação.
O que dizem os envolvidos
Em nota enviada ao UOL, a JBS afirmou que a Seara, empresa do grupo, “imediatamente encerrou o contrato e bloqueou o prestador assim que tomou conhecimento das denúncias”. E contratou uma auditoria externa para checagem da documentação dos trabalhadores de empresas terceiras, além de intensificar a auditoria interna, com análise e verificação diária de todas as condições da prestação de serviços de apanha realizada por terceiros.
Também disse que tem tolerância zero com violações de práticas trabalhistas e de direitos humanos. E que todos os fornecedores estão submetidos ao Código de Conduta de Parceiros e à Política Global de Direitos Humanos, que veda explicitamente qualquer prática de trabalho como as descritas na denúncia.
Procurada, a Santa Colomba Agropecuária afirmou que não irá se pronunciar. E pediu para que seja mencionada manifestação anterior sobre o caso. Nela, defende que decisões tomadas pelo Ministério Público do Trabalho e pela Justiça do Trabalho, bem como as conclusões das investigações da Polícia Civil, comprovam que o caso não diz respeito a práticas de trabalho análogo à escravidão. E diz que se trata de uma ocorrência pontual envolvendo um funcionário terceirizado e um trabalhador.
O advogado da Apaeb, Roberto de Figueiredo Caldas, afirmou que “recebeu com preocupação a notícia da liminar em processo em que não é parte, em que não teve oportunidade de tomar conhecimento, de expor suas razões e apresentar documentos”. Também disse que confia na Justiça e que ficará demonstrado, no caso da associação, que a decisão do ministro do Trabalho foi acertada.
“A fiscalização do MTE, que tão importantes trabalhos tem prestado à nação, errou gravemente em nosso caso. Ela não investigou a responsabilidade real do dono da fazenda e arrendatário, responsável pelo local e condições laborais”, afirma. O advogado diz que a Apaeb nem conhecia os trabalhadores e está a 130 km da fazenda. “A decisão do ministro do Trabalho, Luiz Marinho, afinal tenta salvar uma associação comunitária de 45 anos de excelentes serviços prestados contra o trabalho escravo e degradante, não ao contrário”, diz.

‘Crime de desobediência’
A controvérsia veio a público após reportagem do UOL revelar, em setembro de 2025, que o ministro do Trabalho havia adiado a entrada da JBS Aves na “lista suja”, contrariando decisões técnicas da auditoria fiscal do trabalho. O caso envolvia trabalhadores submetidos a falsas promessas, tráfico de pessoas, endividamento e condições degradantes. O adiamento gerou reação do Ministério Público do Trabalho, que já questionava judicialmente intervenções políticas no cadastro.
A magistrada determinou que o governo federal não volte a usar o poder de avocação ou qualquer outro expediente administrativo para suspender ou retardar a inclusão de empregadores autuados na “lista suja”.
E advertiu que novas interferências podem configurar crime de desobediência, improbidade administrativa e afronta ao Estado Democrático de Direito, uma vez que há decisão judicial transitada em julgado, datada de 2017, sob o governo Michel Temer, obrigando o governo federal a publicizar a “lista suja”.
A decisão judicial não tomou como fundamento a inconstitucionalidade do poder de avocação pelo ministro do Trabalho, mas apontou que, nesses casos concretos, ele foi usada para evitar a publicação na “lista suja”. Ou seja, para desrespeitar decisão judicial.
A “lista suja” é considerada uma das principais políticas públicas de combate ao trabalho escravo no Brasil e já foi validada pelo Supremo Tribunal Federal. A decisão de ontem reforçou que, havendo conclusão administrativa sobre a existência de trabalho escravo, a inclusão no cadastro é obrigatória.
Com a ordem judicial, o governo federal foi oficiado para republicar o cadastro com as três empresas incluídas e manter sua atualização regular.
Governo tomou medida inédita
A JBS Aves, do grupo JBS, havia sido responsabilizada por submeter dez pessoas a condições análogas à escravidão, no Rio Grande do Sul, em abril deste ano. Segundo os auditores fiscais do Ministério do Trabalho, os resgatados atuavam na coleta de frangos em granjas fornecedoras da empresa e tinham jornadas de até 16 horas diárias.
Originalmente, os trabalhadores foram contratados por uma terceirizada, a MRJ Prestadora de Serviços. No entanto, a Inspeção do Trabalho classificou a unidade da JBS Aves de Passo Fundo (RS) como a principal responsável pelas infrações que caracterizaram o emprego de mão de obra escrava, já que era ela quem estabelecia os locais, cronogramas e horários da apanha do frango em suas granjas fornecedoras.
A legislação prevê que, após apurada a responsabilidade por trabalho escravo pela área técnica da Inspeção do Trabalho, seja garantido amplo contraditório e direito de defesa em duas instâncias administrativas, antes de a autuação ser confirmada e o empregador ter seus dados inseridos no cadastro. As empresas não tiveram êxito nas duas instâncias e recorreram ao ministro.
Desde novembro de 2003, quando a “lista suja” foi criada, uma “avocação” por um ministro do Trabalho, ou seja, a decisão do titular da pasta de tomar para si mesmo a palavra final sobre uma autuação, congelando a entrada no cadastro, nunca aconteceu. O período inclui os governos 1 e 2 de Lula, 1 e 2 de Dilma Rouseff, além das gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
Um artigo da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) da década de 1940 prevê que o chefe do Ministério do Trabalho tenha a palavra final, mas isso, segundo o Ministério Público do Trabalho, bate de frente com tratados internacionais que o Brasil ratificou.
“Ao cabo, o MPT e a Justiça do Trabalho garantiram a preservação da ‘lista suja’, instrumento essencial na transparência das ações de combate ao trabalho escravo, que restaria esvaziada pela ação do ministro”, afirmou Luciano Aragão.
A inclusão na “lista suja” ocorre agora após a empresa ter exercido seu direito à defesa contra os autos de infração lavrados na esfera administrativa. Desde 2003, pessoas físicas e jurídicas incluídas no cadastro pelo governo permanecem no sistema por dois anos. Eles podem fazer acordos para ir para uma lista de observação, o que demanda o cumprimento de uma série de critérios e compensações.
Apesar de a portaria que regulamenta a “lista suja” não impor bloqueio comercial ou financeiro, a relação tem sido usada por bancos e empresas para gerenciamento de risco, dentro e fora do Brasil. Por essa razão, as Nações Unidas consideram o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo.