
Por Leonardo Sakamoto
Após o Boeing derrubado pelo governo do Rio nos Complexos do Alemão e da Penha na semana que passou, matando 121 pessoas, institutos de pesquisa foram a campo para tomar o pulso dos vivos em relação à operação policial. Quem vive em Nárnia ficou surpreso com o apoio a ações violentas, mas o restante sabe que, em uma sociedade em que o Estado falha em garantir segurança, corpos sempre produziram votos. O preocupante é que os que governam o estado são os que mais sabem disso.
A extrema direita, aliás, celebrou que, segundo o Datafolha, 57% dos moradores do Rio viram a ação como um sucesso e outros 39%, como um fracasso — margem de erro de quatro pontos. A Genial/Quaest também fez a mesma pergunta, chegando a números semelhantes: 58% dos fluminenses apontam sucesso e 32%, fracasso — neste caso, margem de três pontos.
Com pesquisas embaixo do braço, a extrema direita brada que a minoria deveria aceitar calada a posição da maioria, o que é puro oportunismo. Porque, quando ela é minoria, ignora as pesquisas, chamando-as de mentirosas.
O Datafolha também questionou se a população chancela a afirmação “bandido bom é bandido morto”. Os que concordam totalmente ou em parte somam 51% e os que discordam totalmente ou em parte, 45%. Com quatro pontos de margem, poderíamos alegar um empate técnico, mas seria forçar a amizade. Historicamente sabemos que a maioria tende a concordar com a frase.
Contudo, o dado surpreendente não são os 57% ou 58% que veem a operação como um sucesso e os 51% que abraçam essa declaração, mas os 39% e 32% que viram fracasso e os 45% que discordam da afirmação. Apesar de toda violência, respiram fundo, racionalizam e ainda são capazes de não se deixar levar por soluções populistas e superficiais (que não consideram as causas, mas atacam apenas as consequências), pela vingança pura e simples, pela histeria coletiva do discurso do medo e pelo olho por olho, dente por dente.
A vocês, meus parabéns. Pois não é simples viver em uma sociedade em que pessoas temem ser agredidas por bandidos, mas também pelo próprio governo.

E se os números estiverem corretos, os índices de 39%, 32% e 45% mostram que não é todo o Rio que pensa que matar é a solução. Esse montante é mais do que suficiente para manter um debate público construtivo, buscando alternativas que não abram o alçapão que fica no fundo do poço.
Se você chegou até aqui no texto, bufando, saiba que não estou defendendo bandido, mas que o Estado comporte-se para não atuar como bandido. A polícia, um dos braços armados do Estado, deve seguir as leis e não usar os mesmos métodos de criminosos sob a pena de gerar filhotes monstruosos. Como as milícias brotadas no seio da polícia e que mantém o poder político e econômico em comunidades. Ou matando inocentes no meio de operações.
Tampouco o Estado deveria expor a vida de policiais como fez nesta semana, quando quatro deles, quatro trabalhadores, morreram em meio ao caos. Eles carregam nas costas uma profissão precarizada, sem apoio estrutural, pouco remunerada, jogados para matar e morrer sem se beneficiarem de um trabalho prévio de inteligência, que minimize os riscos que eles correm. Enquanto isso, muitos daqueles que os mandam para a guerra, não se importa se eles voltam para suas famílias.
Parte da população, cansada da violência, apoia desvios de Justiça por parte do Estado. O problema é que o impacto desse apoio se faz sentir no dia a dia do país nas periferias das grandes cidades, em que o Estado aterroriza jovens negros e pobres com a anuência velada de uma parcela de brancos ricos, ou na zona rural, com chacinas policiais cometidas contra quem questiona os interesses de produtores rurais.
A justificativa que damos para nós é a mesma usada nos anos da última ditadura: estamos em guerra contra aqueles que querem destruir nosso modo de vida. Ninguém explicou, contudo que essa guerra atropela os valores que nos fazem humanos e que, a cada batalha, vamos deixando um pouco para trás. Quando, sob a justificativa de erradicarmos um crime, limamos liberdades individuais e garantias de direitos fundamentais, estamos cavando nossa própria sepultura como sociedade.
Sim, a erosão da democracia pode vir através de um golpe rápido ou a conta gotas.
Novamente para quem está com o Tico e o Teco desligado neste domingo: não defendo o crime, muito menos bandidos e quero o Comando Vermelho desarticulado, denunciado, julgado, punido e preso. Defendo o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Em suma, não entregamos para o Estado o poder de usar a violência como último recurso a fim de proteger os cidadãos para que ele a use como padrão de solução de todos os conflitos, matando inclusive cidadãos inocentes.
Por fim, vale a pena lembrar que uma democracia verdadeira passa pelo respeito à vontade da maioria, desde que garantindo a dignidade das minorias. Até porque, como sabemos, a maioria pode ser avassaladoramente violenta. Se não forem garantidos os direitos fundamentais das minorias (e quando digo “minoria”, não estou falando de uma questão numérica mas, sim, do nível de direitos efetivados, o que faz das mulheres uma minoria no país), estaremos apenas criando mais uma ditadura.
Ninguém esculacha morador de bairro rico, apesar de ser lá onde moram quem realmente lucra com o crime organizado.
A redução da violência passa pela ação policial nos territórios, claro, mas antes é necessário reduzir a capacidade bélica dos criminosos com ações de inteligência, estrangulando a conta bancária dos meliantes, cortando bens, grana e fluxo de drogas e de armas. Mas também com uma presença maioria do Estado, que precisa entrar na comunidade não apenas para atirar, mas para levar saúde e educação de qualidade, além de bons empregos aos jovens, cultura, lazer.
“Ah, mas a maioria quer isso, japonês. Você deveria calar sua boca.”
Oportunismo e cinismo em estado mais puro. O mesmo instituto Datafolha aponta que 54% da população são contra uma anistia por parte do Congresso para livrar Jair Bolsonaro de ser preso por tentar um golpe de Estado, enquanto 39% afirmam ser favoráveis à iniciativa. Já a Genial/Quaest aponta que 47% dos entrevistados são contra qualquer tipo de anistia, enquanto 35% a defendem.
Mas não vemos a extrema direita andar com essas pesquisas embaixo do braço. Ou assumir que tanto a execução sumária sem julgamento quanto a dissolução violenta do Estado democrático de direito são crimes em nosso ordenamento jurídico. Muito menos se lembrar que golpistas são criminosos extremamente perigosos, porque tentaram mobilizar militares para assassinar a democracia, ao defender em momentos como este que “bandido bom é bandido morto”.
Quem dera todos tivessem o mesmo direito de ter o seu dia no tribunal, como foi com o julgamento dos condenados pelos atos golpistas, sem ser morto ou preso sem acusação.
Publicado originalmente no Uol