
Por Leonardo Sakamoto, no UOL
É tocante e comovente ver a quantidade de gente criada no leite de pera que vem a público defender a desigualdade estrutural. Reclamam do nascimento de uma suposta polarização social quando se critica um Congresso que legisla para os ricos, esquecendo que a situação começou quando indígenas foram pela primeira vez escravizados para carregar pau-brasil para os portugueses há 500 anos. E, desde então, a desigualdade tem sido a base institucional e alma do país.
O governo Lula conseguiu ter sucesso com vídeos por IA bombando uma informação óbvia, mas nem por isso compreendida pela maioria: o Congresso é mais suscetível a legislar pelos mais ricos. A campanha ficou conhecida pela ideia de “ricos versus pobres”, mas na verdade, a questão são “ricos versus a classe média”.

Se bem absorvida pela população, essa ideia tem mais chance de fazer estragos do que a primeira. Muita gente não se vê como pobre (apesar de ser) e outros tantos brasileiros creem (de forma equivocada) que os mais pobres já contam com benefícios demais. A classe média, principalmente seu estamento mais baixo, que inclui o trabalhador por carteira, vendedores autônomos e o pessoal explorado por aplicativos, ressente-se de falta de políticas que os beneficiem. E criticam o governo federal por causa disso, o que se vê nas pesquisas.
Um número obtido por Guilherme Pimenta e Lu Aiko Otta, do jornal Valor Econômico, via Lei de Acesso à Informação, é pornográfico. Contribuintes com rendimento médio entre R$ 750 milhões e R$ 1 bilhão ao ano pagam apenas 1,49% de Imposto de Renda em média.
Quem recebe entre R$ 150 milhões e R$ 350 milhões é mordido com uma alíquota média anual de 1,87%; entre R$ 350 milhões e R$ 500 milhões, 3,88%; entre R$ 500 milhões e R$ 750 milhões, 2,77%; acima de R$ 1 bilhão, 5,54%.
O nosso sistema cobra, proporcionalmente, mais de uma professora que ganha três salários mínimos do que um empresário que recebe mil vezes isso. Projeto apresentado pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad visa a cobrar pelo menos 10% de Imposto de Renda de quem ganha mais de R$ 600 mil por ano. A ideia até considera o que já é pago de imposto pela empresa no cálculo do que será cobrado do acionista.
Isso lembra que super-rico não é você, que faz parte da massa de 212,4 milhões que aprenderam a se virar, mas as 141,4 mil almas que ganham mais de R$ 50 mil mensais. Mesmo assim, muita gente do andar de baixo age como guerreiro do capital alheio e goza com esses números pornográfico de alíquotas baixas para os super-ricos.
Ver o pessoal que se beneficia da isenção de dividendos recebidos de empresas elogiando o atual modelo regressivo faz parte do jogo, é a defesa da própria classe social. O que me deixa intrigado é quem ganha tanto quanto a professora sair em defesa raivosa desse sistema, talvez na esperança que um dia seja ele o beneficiário.
Com a segunda etapa da Reforma Tributária, que trata da reforma do Imposto de Renda, parada, o governo tentou pautar o tema com a proposta de cobrar do andar de cima para isentar quem ganha até R$ 5 mil por mês, ou seja, a classe média – os mais pobres já não pagam esse imposto.
A isenção vai passar no Congresso, porque deputados e senadores não são suicidas políticos e ano que vem tem eleição. A questão é se conta para os ricos também será aprovada dessa forma.
Vale aqui pena parafrasear o Evangelho de Mateus para lembrar que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um parlamentar super-rico aprovar a taxação de sua classe social. E o que mais temos entre deputados e senadores são pessoas que são desse grupo ou que o representam.
Algo que ajuda na tomada de decisão deles é que, segundo pesquisa Datafolha, 76% apoiam a proposta de taxação do andar de cima.
Combater a desigualdade não resolve de vez os problemas do país, mas é uma ação fundamental para indicar o tipo de sociedade que gostaríamos de construir: um país que acredita na redução das regras para ricos e classe média e pobres como pré-condição para o desenvolvimento coletivo ou um que tem um orgasmo toda vez que um bilionário brasileiro sobe um degrau no ranking de bilionários globais da Forbes.
A desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.
Enquanto isso, somos um navio remado por trabalhadores que, a qualquer sinal de tempestade, aumenta a frequência do estalar do chicote enquanto poupa meia dúzia de passageiros ricos. Ironicamente, uma parte dos remadores não questiona a exploração, mas rema sonhando feliz ao ver a imagem dos mais ricos glamourizando no Instagram.