
Por Leonardo Sakamoto, no UOL
“Construção”, uma das mais contudentes músicas de Chico Buarque, foi atualizada, na última sexta (4). Não era um operário que caiu de um andaime e morreu na contramão atrapalhando o sábado após sua última marmita, mas um marceneiro negro morto com um tiro na cabeça, quando estava saindo do trabalho por um policial militar que o confundiu com um ladrão, ficando estirado no chão ao lado de sua marmita até o sábado de manhã.
Guilherme Ferreira bateu o ponto às 22h28 na fabrica de camas onde trabalhava, em Parelheiros, bairro pobre da capital paulista, e foi morto às 22h35, quando corria para pegar o ônibus e voltar para casa. Sete minutos que valeram uma vida. Junto a seu corpo, que ficou cercado de transeuntes que diziam se tratar de um bandido, foram encontrados, além da marmita, uma carteira, o celular, remédios, chaves e uma bíblia.
O policial Fábio de Almeida, autuado em flagrante por homicídio sem a intenção de matar, pagou R$ 6,5 mil e foi liberado. Em casos assim, a chance é grande de, no fim das contas, o autor do disparo não ser devidamente responsabilizado.
Mas não é um erro. É o sistema funcionando como foi desenhado. A polícia brasileira, especialmente a militarizada, é treinada para ver o negro pobre como inimigo. O resultado é uma carnificina diária, onde pobres e periféricos viram estatística de “autos de resistência” ou “mortes em confronto”.
Enquanto isso, a sociedade segue dividida entre quem enxerga nessas mortes uma tragédia evitável e quem acredita que “bandido bom é bandido morto” — mesmo quando o bandido, no caso, é só um trabalhador com sua marmita. Quem morre torna-se culpado, pois as balas do policial fazem o papel de investigador, promotor, juiz e carrasco.
E, assim como na canção de Chico, sobram proparoxítonas, como cúmplice (o Estado que mantém o sistema que produz esses mortos), trágico (o massacre contínuo de pobres nas periferias) e patética (a indiferença da sociedade diante de tudo isso). Guilherme não caiu de um andaime, mas tombou sob o peso de um país que insiste em não reconhecer o valor da vida negra.
Enquanto sua marmita estava vazia e fria no asfalto, o sistema seguia quente, funcionando com precisão cirúrgica para proteger quem aperta o gatilho — e não quem leva o tiro.