
Há boicotes que funcionam, mas o da militância de extrema direita contra as Havaianas por causa da propaganda com Fernanda Torres não foi o caso. Ajudou a organizar um pouco a militância, que andava cabisbaixa com a prisão de Jair Bolsonaro por golpe e serviu para veículos de comunicação e influenciadores ganharem audiência. E só.
Para quem estava preso em uma caverna nos últimos dias: a tentativa de cancelamento das Havaianas surgiu após um comercialser visto como um posicionamento político. A atriz pedia para, ao invés de entrar em 2026 com o pé direito, entrar com os dois pés, “na porta, na estrada, na jaca, onde você quiser”.
A tentativa de boicote seguiu o roteiro já conhecido das guerras culturais brasileiras: um anúncio vira campo de batalha simbólico, onde algo (neste caso, sandálias de borracha) passa a ser tratado como manifesto ideológico. Nas redes, militantes indignados convocam o boicote devido, em última instância, ao fato de uma atriz ter posicionamento político progressista.
Boicotes digitais tendem a inflar o engajamento da marca que dizem combater, transformando indignação em publicidade gratuita. No fim, a sandália continua no pé de quem quer conforto; a atriz segue trabalhando; e a polêmica cumpre sua função favorita: distrair do debate real (falta de propostas para a vida real das pessoas), enquanto reforça a lógica do “nós contra eles” que alimenta a indústria da indignação.
As ações da Alpargatas, dona da marca, fecharam a sexta (19) com queda de 2,39% por causa de investidores ingênuos assustados com a polêmica, mas depois subiram 4,02%, encerrando a terça (23) em alta maior do que a queda. Neste momento, a empresa vale R$ 303 milhões a mais do que valia antes do início do bafafá.
Filas de consumidores, inclusive bolsonaristas-raiz, nas lojas da empresa nestes últimos dias mostram que a população deu de ombros e estava mais interessada em comprar, para o Natal, sandálias de uma marca cuja imagem foi construída dentro e fora do país por décadas.
Boicotes até funcionam, mas não desse jeito
Boicotes são usados desde sempre por consumidores insatisfeitos com o comportamento de marcas. Eles têm mais chance de sucesso se ocorrerem para pressionar determinadas empresas, causando apreensão aos seus investidores sobre o risco de perdas diante de um problema real. Real, não algo imaginário, como comunistas marchando de sandálias para transformar os filhos de filhas de homens e mulheres de bem em nome de bilionários intelectuais e gayzistas que defendem tomar à força todas as casas de trabalhadores e fazem campanha para o “Lule” com a ajuda de Leonardo Di Caprio e do papa Leão 14.
Ou seja, boicotes têm sido usados ao redor do mundo após denúncias ligando grandes marcas próximas aos consumidores a graves problemas sociais e ambientais, como trabalho escravo, trabalho infantil, racismo, machismo, destruição ambiental.
Contudo, um rosário de pesquisas sobre responsabilidade corporativa aqui, na Europa e nos Estados Unidos mostram que o consumidor é um tremendo garganta. Atua bem menos do que fala nesses casos. E, normalmente, apenas enquanto o caso está na mídia, que é, por isso, a janela de oportunidade para pressionar para que empresas corrijam esses problemas em sua cadeia produtiva.
Ou melhor: para tentar mudar a balança de forças dentro de uma corporação, empoderando momentaneamente setores que apontavam a necessidade de corrigir um comportamento e, assim, continuar lucrando, mas eram engolidos por outros setores que defendiam apenas lucrar para continuar lucrando.
Por conta de pressão social, empresas que foram envolvidas em condições análogas às de escravo, por exemplo, tomaram ações para melhorar o controle de suas cadeias produtivas, pois a vinculação de seus nomes com a escravidão costuma gerar até queda de ações na Bolsa de Valores.
Como foi o caso da Cosan. Após a sua inclusão, no final de 2009, na “lista suja” do trabalho escravo, o cadastro do governo de responsabilizados por esse crime, grandes redes de supermercados suspenderam a compra de açúcar das suas marcas. E o BNDES decidiu suspender, em caráter preventivo, “todas as operações com a empresa” até que ela saísse da lista. Com isso, as ações tiveram desvalorização de 5,32% na Bolsa de São Paulo no dia 7 de janeiro de 2010.
Ou da Zara. No dia 16 de agosto de 2011, veio a público o resgate de trabalhadores em condições de escravidão contemporânea em oficinas de costura que forneciam para ela. Os protestos do público (revoltados com o fato de que roupas caras foram feitas por escravizados) cruzaram o Atlântico e, no dia 19 de agosto, as ações da espanhola Inditex, dona da Zara e de outras marcas de roupas, fecharam com uma queda de 3,72% na Bolsa de Madri.
Ou da Aurora, Salton e Garibaldi. Parte dos 207 resgatados da escravidão em Bento Gonçalves (RS), no início de 2023, trabalhava para a Fênix, uma prestadora de serviço das três vinícolas, atuando na carga e descarga de uvas. Isso gerou comoção devido à violência com a qual eles eram tratados – o que incluía o uso de armas de choques, spray de pimenta e cassetetes. Protestos e boicotes foram convocados, e as marcas correram para anunciar ações e mudanças.

Nesses casos, empresas recuperam o valor no mercado quando apresentam ações para mudar suas políticas, quando o escândalo é substituído por outro ou quando decidem fazer uma promoção de descontos agressiva junto com campanha de marketing. Mas o choque costuma forçar a discutir internamente políticas e práticas das empresas, pois as demandas da sociedade eram lastreadas na realidade. E não em uma guerra cultural que adultos sabem ter sido criada com objetivos de poder de um grupo.
Comprar é um ato político. Nós depositamos nosso voto na maneira como um produto foi fabricado ao adquiri-lo. E assim como nas eleições a informação é fundamental para votar conscientemente, também ela é necessária para que o ato de comprar não signifique o financiamento da agressão de seres humanos e do meio ambiente.
No fim das contas, o boicote às Havaianas revelou menos sobre o poder transformador do consumo e mais sobre a pobreza política de uma indignação que prefere combater símbolos a enfrentar problemas concretos.
Quando a “luta” se volta contra uma atriz ou um comercial inofensivo, ela não constrange empresas, não muda práticas, não melhora a vida de ninguém, apenas gera barulho, engajamento e distração.
Boicotes que funcionam exigem lastro na realidade, informação e foco em violações reais de direitos, o resto é teatro de guerra cultural, útil para inflar egos, alimentar algoritmos e reforçar narrativas, mas incapaz de causar prejuízos reais a qualquer marca.
Originalmente publicado no UOL