Saúde para gado: Bolsonaro quer vincular atendimento médico à política e resultado do agronegócio. Por Paulo Henrique Arantes

Atualizado em 3 de novembro de 2020 às 6:27
Povo não é gado

Em mais um vai-e-vem abilolado, Jair Bolsonaro publicou e revogou o Decreto Presidencial 10.530 / 2020, não sem anunciar sua reedição nos próximos dias. Tratava-se nitidamente – ou trata-se – de um impulso na privatização do sistema público de saúde, já em curso, disfarçado de estudo para aprimoramento de gestão. “Gestão” é a palavra preferida dos tecnocratas que enxergam modernidade na destruição do Estado, mesmo que os modelos de saúde mundo afora provem o fracasso das experiências privatizantes nesse campo.

A maldade vem em pacotes, ou em sacos, como já disseram. Poucos notaram outro decreto (10.531 / 2020), publicado no mesmo 26 de outubro, instituindo a Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no Período de 2020 a 2031, que reforça a parceria dos entes públicos com o setor privado (“parceria” é outra palavra adorada pelos liberais) e insere a saúde num estranho bolo cujo ponto da massa é obtido via agronegócio.

“O Decreto 10.531 destaca como desafio para a produtividade da economia brasileira ‘posicionar o agronegócio como referência na promoção de saúde e qualidade de vida para a sociedade mundial, por meio da produção eficiente e da entrega efetiva de produtos, serviços, processos e de seus derivados, com base em sustentabilidade, bioeconomia, agricultura digital, inovação aberta e sistemas alimentares contemporâneos’.

A articulação entre o agronegócio e a saúde é vista como algo benéfico pelo governo, mesmo com as evidências científicas disponíveis da relação predatória do agronegócio com o ambiente, em especial na conjuntura da pandemia, e sua repercussão na saúde pública brasileira”, alerta Áquilas Mendes, professor de Economia Política da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP.

“Claro, para um governo anticiência, evidências científicas servem apenas para uma coisa: atrapalhar os negócios. A relação entre agronegócio e saúde está totalmente em sintonia com a visão dos conservadores do mercado, para quem a saúde é uma mercadoria fundamental para o capitalismo contemporâneo”, ataca Mendes.

O segundo e pouco notado decreto de outubro, segundo o economista, estabelece que o aprimoramento do SUS decorrerá “da articulação entre os setores público e privado”.

“Articulação” é mais uma palavra mistificada pelos privatistas, enquanto as pessoas razoavelmente informadas sabem que, nessas articulações, a única coisa que se articula é o desmonte do setor público.

Há quem lucre com isso, é claro.

Os Decretos 10.530 (revogado) e 10.531 (em vigor) fazem parte do emaranhado normativo que visa, em última instância, à privatização da mais importante experiência do mundo em atenção à saúde, a única em que se pratica de fato atendimento universal – o SUS.

De acordo com Áquilas Mendes, os decretos em questão fazem parte de uma série de medidas tomadas pelo governo Bolsonaro após a criação da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, no âmbito do Ministério da Saúde, cuja base é a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB / 2017), obra do governo Michel Temer.

Entre os frutos dessas iniciativas está a Lei 13.958 /2019 (nascida da MP 890 / 2019), que autorizou a criação da Agência para Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), esta formalizada em meio à pandemia do novo coronavírus pelo Decreto 10.283 / 2020 e cuja atribuição principal é a contratação direta de prestadores privados.

“Foi também criada a Carteira de Serviços para a Atenção Primária à Saúde (Casaps), com o estabelecimento da relação de serviços a serem ofertados pela atenção básica por meio da criação de um rol de procedimentos e número de pessoas cadastradas a ser coberto pelas unidades de saúde, ou seja, instituiu-se o pagamento por capitação”, relata Mendes.

A franquia de serviços primários de saúde ocorre em paralelo ao caos no financiamento do setor causado pela Emenda Constitucional 95/ 2016, a Lei do Teto, panaceia dos fiscalistas.

“Desde 2018, o SUS já perdeu 22,5 bilhões de reais. Com o mercado de planos de saúde em desaceleração, com o impedimento constitucional de expansão da incorporação tecnológica na média e na alta complexidade do sistema público, com o esgotamento da gestão terceirizada nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, o novo nicho de acumulação de capital em larga escala nos sistemas de saúde é a atenção primária”, explica Áquilas Mendes.

“Destruir o caráter público, estatal, gratuito e universal do SUS é um projeto do capitalismo internacional, com destaque para os documentos de sugestão do Banco Mundial nesse sentido e, claro, muito bem operado pelo governo Bolsonaro”, aponta o professor da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Proposições como as contidas no famigerado decreto sobre a “gestão’ da atenção básica vêm nesse contexto. O objetivo camuflado – ou nem tão camuflado assim – é, segundo Mendes, “transferir o pífio gasto público em saúde (3,9% do PIB) para pagamento de gestão privada (5,7% do PIB em 2017)”.

“As Unidades Básicas de Saúde, como porta de entrada do SUS, dizem respeito à atenção primária à saúde e, portanto, são o principal serviço do sistema que serve para vacinar a população”, adverte o especialista.

Nas mãos de quem estará a aplicação da vacina contra a Covid-19 que parece estar próxima?

Poderá estar nas mãos das tais Organizações Sociais (OSs), cujas experiências na gestão da saúde pública em vários estados não é alentadora. Organismos dessa natureza não raro aparecem envolvidos em escândalos de corrupção.

É o caso de São Paulo – há uma CPI das OSs em curso na Assembleia Legislativa – e Rio de Janeiro, cujo governador, Wilson Witzel, está afastado por desvio de dinheiro da saúde em sintonia com “gestores” privados.

Segundo Gastão Wagner, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde no primeiro governo Lula, as OSs “fragmentam o SUS”.

“Todas as denúncias de corrupção por desvios de verbas para a saúde na pandemia – no Rio, no Distrito Federal, em Santa Catarina, no Pará – envolvem OSs como agentes”, – observa Wagner, que é professor titular da Faculdade de Medicina da Unicamp.

Gastão Wagner reconheceu de imediato no Decreto 10.530 “a nítida intenção de privatização”, uma forma de “comprar serviço no campo da atenção básica sem os protocolos e o compromisso com a prevenção nas comunidades”.

O professor lembra que, em 1969, com o A.I. 5 em seus primeiros passos, a ditadura tentou implantar algo parecido, num projeto-piloto, nas cidades de Campinas (SP), Friburgo (RJ) e Niterói (RJ). “Ficou caríssimo! Gastou-se nas três cidades mais do que com a atenção primária no país inteiro”, recorda.

O DCM perguntou ao professor Gastão Wagner se os médicos cubanos do programa Mais Médicos, postos para fora do país pelo capitão que ocupa o Palácio do Planalto, fazem falta no combate ao coronavírus. Eis a resposta:

“A atenção primária que eles exerciam tem o papel de rastreamento e isolamento. A presença dos médicos cubanos seria muito positiva para se evitar a propagação de surtos”.

Segundo Wagner, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), entidade da qual ele foi presidente, o Conselho Nacional de Saúde e outros órgãos lutam por 15 bilhões de reais a mais no Orçamento para a atenção primária à saúde.

“É preciso contratar médicos e comprar equipamentos. Hoje, a atenção primária alcança 50% da população que dela necessita, e a qualidade do atendimento a esses 50% é muito heterogênea”, afirmou.

Também perguntamos ao professor por que duas entidades médicas nacionais, a Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), mostram-se tão apáticas diante da destruição do sistema público de saúde brasileiro.

A resposta não poderia ser mais sucinta:

“A onda conservadora atingiu as entidades médicas. As últimas gestões da AMB e do CFM foram contra o SUS.”