Se nem Glória Maria, em seu “lugar de fala”, pode dizer o que pensa, que será de nós, mortais? Por Nathalí Macedo

Atualizado em 20 de novembro de 2017 às 13:08
A postagem de Glória Maria

Eis um fato tão adstringente quanto uma segunda-feira: os movimentos de esquerda têm se preocupado pouco (ou nada) com as questões individuais.

O coletivismo frenético é compreensível diante de uma polarização tão brutal: a necessidade do sentimento de pertencimento de uma geração perdida em si mesma é absolutamente justificável, mas perigosa.

Exemplos: Ney Matogrosso sendo rotulado pelo movimento LGBT como um “artista cristalizado” por não seguir a cartilha; Chico sendo rechaçado pelos feminismos por compor uma música sobre adultério; Glória Maria sendo virtualmente linchada por criticar publicamente os rumos do movimento negro e das lutas raciais no Brasil.

No Instagram, às vésperas do dia da consciência negra, ela compartilhou uma frase de Morgan Freeman, também negro, que denota certa indiferença à data e ao seu significado: “O dia em que pararmos de nos preocupar com a consciência negra, amarela ou branca, o racismo desaparecerá.”

Considerando que essa história de “consciência humana” é basicamente inaceitável para o movimento negro, é claro que o post foi duramente criticado. Muitos se atreveram a pedir que ela excluísse a imagem.

“Algum de vocês conhece a minha história e a dele? Se contentam em tirar conclusões e emitir opiniões equivocadas em redes sociais! Nós estudamos, lutamos, resistimos e combatemos todo tipo de discriminação! O preconceito racial é marca nas nossas vidas! Mas não tenho que mudar minhas ideias por imposição de quem quer que seja! Apagar este post???? Nunca!!!!”, respondeu, e não apagou.

Se nem Glória Maria, uma jornalista respeitada e em seu “lugar de fala”, pode dizer o que pensa, que será de nós, mortais?

Os dogmas dos movimentos de esquerda – em especial dos feminismos, que são aqueles que me atingem diretamente – têm beirado o fundamentalismo.

A violência com que a individualidade das pessoas é podada não impulsiona nenhum movimento para frente e, de bônus, impulsiona as pessoas para trás, ao passo que busca apaga-las.

Glória Maria é uma negra que não comemora o dia da Consciência Negra. Ney Matogrosso não levanta a bandeira LGBT porque, disse ele, sua vida não se resume à sua sexualidade; Chico compõe músicas sobre pais que abandonam filhos por paixões efêmera; Karnal e Luiz Felipe Pondé jantam juntos quando sentem vontade.

Todos são duramente criticados – por vezes, silenciados – por dizerem o que pensam.

Eu, por minha vez, sou uma feminista que gosta de se maquiar. Que faz ensaio sensual. Que quer casar e ter uma filha chamada Helena. Que gosta de homens – e também de mulheres. Que não acredita que sempre que um homem fala a uma mulher sobre algo que ela não conhece, ele pratica mansplaning. Que acredita que mulheres também podem serem abusivas.

O preço é alto, como se é de imaginar: já fui rechaçada por radfeministas por me relacionar com homens e apoiar o transfeminismo; já fui repreendida por amigas feministas por “performar feminilidade”; já recebi críticas por dizer que não via machismo numa situação na qual eu realmente não via machismo (nota: isso não me torna menos feminista).

Sou frequentemente podada – e, creiam, não estou sozinha –  nos meus gostos pessoais e nas minhas escolhas individuais por um movimento que se propõe a acolher mulheres, mas tem caçado mulheres.

O que somos intimamente é a nossa maior resistência. Render-se à cartilha do que quer que seja não combina com um pensamento progressista, e apagar o individualismo é minar todas as possibilidades de um movimento coletivo minimamente eficiente.

Espero que, como Ney, Glória, Chico e tantos outros, cada vez mais artistas – e pessoas – insistam em serem quem são em uma geração que molda seres humanos em nome da liberdade.

“Feminista branca falando bosta”, alguém dirá.

Apagar?

Nunca.

 

Nathalí Macedo
Nathalí Macedo, escritora baiana com 15 anos de experiência e 3 livros publicados: As mulheres que possuo (2014), Ser adulta e outras banalidades (2017) e A tragédia política como entretenimento (2023). Doutora em crítica cultural. Escreve, pinta e borda.