Se o Roger Moreira é inteligente, eu quero ser burro. Por Luis Felipe Miguel

Atualizado em 29 de junho de 2023 às 19:40
Gustavo Gayer falando e gesticulando
Deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO) – Reprodução

Os bolsonaristas buscam seus minutos de fama falando asneira. Quanto maior o absurdo, quanto mais ofensivo e preconceituoso, melhor.

Agora foi o deputado que atribuiu a vitória de Lula à burrice do eleitorado brasileiro, ligou essa burrice à ascendência africana, constatou que “na África quase todos os países são ditadores” (sic) e fechou afirmando que o QI dos africanos é inferior ao de macacos.

É melhor não citar o nome nem publicar foto do sujeito: não dar a ele a notoriedade que buscou.

Na tentativa de dar roupagem científica a seu racismo, o deputado e seus entrevistadores usaram um dado pretensamente objetivo (o QI médio), retirado sabe-se lá de qual orifício de sua anatomia.

Mas o que é o QI? Ele é aceito, sem que a gente reflita muito, como indicador padrão de inteligência. Será que um fenômeno complexo e multifacetado como a inteligência humana pode mesmo ser reduzido a uma escala linear?

E como explicar os paradoxos – por exemplo, que Roger Moreira, péssimo ex-músico e bolsonarista fanático, autor de alguns dos tuítes mais estúpidos da história, ostente orgulhoso seu diploma de associado da Mensa, organização que reuniria pessoas com QI elevadíssimo?

Se o Roger Moreira é inteligente, eu quero ser burro.

Roger Moreira, do Ultraje a Rigor, e Jair Bolsonaro. Reprodução SBT

Há uma relação direta entre a busca de uma forma de medir inteligência e o racismo – na verdade, de demonstrar que os não europeus, as mulheres e os trabalhadores são menos dotados intelectualmente, logo destinados à inferioridade no mundo social.

No século XIX, o barato era medir e pesar cérebros. Os dados sempre chegavam aos resultados esperados, sobretudo graças à manipulação das amostras – incluindo adolescentes entre os grupos não europeus, por exemplo.

Valia tudo para demonstrar “cientificamente” o racismo. Francis Galton concluiu que o importante era a diferença de longitude entre duas partes do corpo caloso do cérebro, o“joelho” e o “esplênio” – e, óbvio, os brancos aí apresentavam uma “performance” muito melhor que os negros. Como o joelho também estaria ligado ao olfato e, sabe-se lá porque, os negros teriam olfato mais desenvolvido, ele conclui que sua inteligência deve ser ainda menor: têm o joelho pequeno e ainda “gastam tudo” para desenvolver o olfato, não sobra nada para a inteligência.

É desnecessário dizer que, numa experiência feita às cegas, sem se saber de quem era o cérebro que estava sendo medido, as diferenças entre brancos e negros desapareceram por completo. O importante é perceber o método: dado o preconceito, busca-se desesperadamente alguma medida que dê um verniz científico a ele.

O teste de QI ocupa esse lugar. Seu criador, Alfred Binet, buscava apenas detectar quais crianças precisariam de acompanhamento escolar especial. Era este o único objetivo de sua escala.

“A escala, rigorosamente falando, não permite medir a inteligência, porque as qualidades intelectuais não se podem sobrepor umas à outras e, portanto, é impossível medi-las como se medem as superfícies lineares”, escreveu Alfred Binet, criador do teste de QI.

Afinal, existe esse negócio chamado “inteligência”, como um dado da natureza, ou somos nós que produzimos uma ideia do que seria “inteligência” e daí vamos buscá-la nos indivíduos? Ela pode ser vista como uma unidade? E mesmo que seja unificada o suficiente para permitir uma simples medida, será que os testes de QI dão esta medida? Ou eles são influenciados por processos de abstração e um certo tipo de lógica formal que são inculcados pela instituição escolar? O resultado é uma medida de capacidade inata ou pesam aí circunstâncias sociais – que fazem, por exemplo, que meninas piorem seu desempenho na matemática quando chegam à puberdade, para se adaptarem a estereótipos de gênero?

O fato é que o QI hoje é usado para naturalizar – e portanto justificar – as desigualdades sociais.

Para que temos que olhar a história da África, o tráfico de escravos, a tragédia do colonialismo? Tudo se explica pelo QI “inferior” dos nativos.

Para saber mais: GOULD, Stephen Jay (2003). A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes.

Publicado originalmente no Facebook do autor
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