“Se só tem tu, vai tu mesmo”: Bolsonaro e a falência da política tradicional. Por Eugênio Aragão

Atualizado em 17 de dezembro de 2018 às 13:28
O presidente eleito, Jair Bolsonaro – Tânia Rêgo/Arquivo Agência Brasil

POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça

Assim como Adolf Hitler para chanceler do Reich não era a perspectiva preferencial do establishment alemão em 1932, Jair Bolsonaro para presidente não animava o establishment brasileiro em 2018. 

Na Alemanha do início dos anos trinta, o reacionário oportunista Franz von Papen fazia a festa dos patrões. Chegara ao poder através da traição, da intriga e da conspiração contra seu antecessor autoritário Heinrich Brüning, apoiado pela social-democracia e por seus sindicatos, mas, também, com fortes alianças com setores militares. 

Von Papen, que o acusava de ser simpatizante da esquerda, já no governo, passou a promover a redução do “custo do emprego”, o aumento das subvenções para a indústria, o estabelecimento de barreiras tributárias protetivas do mercado interno e a repressão da atividade sindical-partidária da esquerda. 

Era um verdadeiro pai para empresários pouco impressionados com a crise social que se avolumava nas famílias proletárias alemãs. E não parava de dizer: “o importante é crescer, estabilizar a economia e estamos no caminho certo”. 

Contentava-se com a abstração estatística, que mostrava um viés de prosperidade para os tempos por vir. Finalmente as negociações com os vencedores da 1ª Guerra Mundial mostravam resultados na diminuição da dívida de reparações e o comércio internacional dava sinais, ainda que fraquíssimos, de recuperação. 

O mercado interno se bastava com uma burguesia ávida por consumo de luxo. O jornalista russo-americano Abraham Plotkin, em viagem prospectiva pela terra arrasada da crise, anotava que, nas lindas avenidas de Berlim, as vitrinas estavam cheias, os restaurantes e as casas noturnas bem frequentadas, com ares de normalidade impressionante, muito diferente da paisagem de desalento de Nova York pós 1929.

O quadro é muito próximo do período que se usa chamar de “governo Temer” (que de “governo” não tem nada), uma caricatura tupiniquim do governo de Von Papen. 

Também ele se esmerou, ao longo de dois longos anos, em desfazer políticas sociais e demonizar o PT, que o permitira ser vice-presidente, no banquinho de reserva, pronto para derrubar à sorrelfa, igualmente com intriga e conspiração, a presidenta legítima Dilma Rousseff. 

Também aqui, apesar do mísero um por cento de crescimento, os índices econômicos abstratos fazem o mercado antever que “o pior já passou”, indiferente para com a miséria da massa de desempregados, subempregados na informalidade e de “lumpen” excluídos do processo de produção de riqueza. 

A volta da fome entre os mais pobres, o aumento da inadimplência de consumidores, a destruição do atendimento à saúde e a forte desaceleração nos investimentos sociais não chegam a tirar o sono dos patrões. 

Estaríamos  ainda melhores que a Venezuela… Afinal, em dezembro de 2018, os navios de cruzeiro na costa brasileira estão com lotação completa, não há, também, vagas nos resorts do nordeste e “o brasileiro” enche os shoppingcenters para fazer compras às vésperas de Natal.

A reação da massa à crise social e a indiferença dos capitalistas lá e cá levou a um processo de radicalização política de que se aproveitou o fascismo, a disseminar pavor ao “perigo comunista” e ódio a sindicalistas e políticos de esquerda. 

Atribuíram e atribuem, então e agora, a culpa por todos os males à “desnaturação” daquilo que chamavam e chamam de “valores” (whatever that means) pela cultura do “marxismo” (que, no caso dos fascistas alemães, era sinônimo de “judaísmo” e, no dos brasileiros, sinônimo de “terrorismo islâmico”, “ideologia de gênero”, “vitimismo”, “corrupção” ou “bolivarianismo”, uma verdadeira sopa de letras para alimentar a cachola vazia de irados sem causa).

O establishment pode ser canalha, mas idiota não é. Esse papo “dumb” sempre é para consumo da massa, por quem empresários, latifundiários e empregadores nutrem total desprezo. Mas têm faro apuradíssimo por oportunidade de negócios. 

Claro que preferem seus vogais tradicionais na política. Estes têm o rabo preso, lhes devem favores e ostentam telhado de vidro, senão de celofane! São presas fáceis. Sua fidelidade é questão de sobrevivência e, por isso, são muito mais confiáveis e afáveis. Claro que Von Papen e sua cambada era preferível para fazer o trabalho sujo contra os interesses da grande maioria dos alemães miseráveis. 

É evidente, também, que nossos capitalistas preferem gente do tipo de Michel Temer, Henrique Meirelles, Picolé de Chuchu ou até de Álvaro Dias. São de casa, entram pela porta da cozinha e são afeitos aos agrados do capital, legais ou ilegais, tanto faz.

O problema para os endinheirados é que sua clientela política não engana mais ninguém. Não tem voto. As massas estão fartas de seu cinismo, de seu desserviço contra a maioria das brasileiras e dos brasileiros. A incapacidade de Temer fazer passar a odiada reforma da previdência no Congresso fala por si. 

É como um advogado que não tem o respeito dos tribunais – ninguém dessa turma de interesseiros contrata. Temer é assim: cansou até quem sustentou sua traição contra a companheira de chapa. É um bagaço de laranjada chupado, sem sumo.  Até nisso lembra Von Papen: a burguesia alemã sabia que não conseguia mais formar maioria no Reichstag e, por isso, sozinho não servia para mais nada. “Ausgemustert”, já havia dado o que tinha que dar.

Franz von Papen e, hoje, Michel Temer são, porém, marcados pelo espírito de sobrevivência. Como não conseguem mais encantar a rica donzela do capital com seus próprios dotes viris, passam de amantes a proxenetas políticos e adotam um fascista para chamar de seu: um marombado que satisfaça a rica donzela do capital e, se conseguirem ascendência sobre ele, mantenha intactos seus interesses materiais. 

Para o alemão, esse amante profissional seria Adolf Hitler, o corporal austríaco de cabeça quente, que odiava judeus e comunistas. Tudo de ruim, mas ainda podia procriar politicamente e, talvez, quem o levasse ao poder poderia lucrar com o preço da cobertura. Para Temer e sua corriola de golpistas, o touro a ser domado seria Jair Bolsonaro.

Von Papen provou quão arriscado é, para a burguesia, apostar no fascismo. Fascistas não são domáveis. São balas perdidas. Só o desespero diante da insustentabilidade do custo social de sua prática econômica exploradora é que faz capitalistas optarem pelo atalho totalitário.  Essa aposta é a “ultima ratio”, pois a alternativa socialista ou social-democrata é, para eles, intolerável. 

Mas, “se só tem tu, vai tu mesmo”, como diz a resignação popular. Temer e sua patota  fazem o mesmo ao apostarem suas fichas em Jair Bolsonaro, certos de que, se algo der errado, não serão eles que pagarão a conta. Se nenhuma saída houver no Brasil, a haverá em Miami. Afinal, é para isso que juntaram dinheiro em offshores.

Aqui o fascismo vicejará por algum tempo, fazendo seu inevitável estrago. A receita é sempre a mesma. Fascismo não é ideologia. É prática política rasteira, calcada na mentira que causa ódio, rancor e fobias nas massas. Em transe, estas se tornam suscetíveis a acreditar em falsas promessas de um lar de “brasileiros de bem”, com valores “cristãos” e de um mundo em ordem, mesmo na tempestade global de incertezas e riscos. 

Por detrás está um projeto de poder totalitário que aniquilará a democracia e suas liberdades civis. Nada além disso. Fascismo é o engodo a serviço da violência. E, como violência só traz violência em troca, sua capacidade de destruição de riquezas de uma nação é enorme. Trata-se de projeto predatório. A Alemanha que o diga com seu monstro grande que pisou forte, parafraseando Mercedes Sosa.

Já podemos ouvir o zumbido dos foguetes V-2 de nossos fascistas tupiniquins. As mortes no campo aumentaram só com a perspectiva do que está por vir. O medo se espalha nas escolas, onde a relação de confiança entre alunos e professores é substituída pelo denuncismo intolerante. E o abuso da polícia se espraia pelas cidades, na certeza da impunidade. 60.000 homicídios num ano só não é pouca coisa.

A política tradicional – aquela que sempre enganou eleitores a cada quatro anos e se alimentou secularmente das prebendas empresariais – está no seu crepúsculo, com ou sem Jair Bolsonaro. Durará algum tempo, mas o desastre fascista seja, talvez, o único caminho para chamar massas imbecilizadas à razão. 

Foi assim na Alemanha e infelizmente parece que será aqui também! Até lá, quem tem um mínimo de discernimento só pode escolher o duro e doloroso caminho da resistência. Haverá mártires, mas seu sangue lavará essa nossa terra das aventuras da canalhice.