Secretaria de Cultura de Doria é acusada de aparelhar organização social

Atualizado em 16 de dezembro de 2020 às 14:49
Leitão assumiu a secretaria em 1º de janeiro de 2019, quando João Doria tomou posse como governador de São Paulo – Tomaz Silva/Agência Brasil

Publicado originalmente no site Brasil de Fato

POR IGOR CARVALHO

Dona do segundo maior contrato da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo entre as organizações sociais (OS), R$ 153 milhões, a Amigos da Arte mantém em seus postos de comando pessoas ligadas ao secretário da pasta, o jornalista Sérgio Sá Leitão, o que configuraria aparelhamento da entidade pelo governo paulista, de acordo com especialistas em administração pública.

O Ministério Público Estadual de São Paulo (MPE) instaurou um procedimento preparatório de inquérito civil para investigar a relação entre o secretário e os trabalhadores nomeados na OS. No dia 19 de outubro, um ofício foi enviado à pasta solicitando que Sá Leitão se posicione sobre as acusações. O prazo para resposta é de 60 dias e ainda não foi respondido pela pasta.

No procedimento, o MPE afirma que o processo é para “apuração de suspeita de má gestão de recursos públicos e afronta aos princípios administrativos pela organização social de Cultura Amigos da Arte”, que “manteria estreita ligação com a pasta, com a contratação de empresas e pessoas próximas ao atual secretário Sérgio Sá Leitão para prestação de serviços e cargos de direção.”

Leitão assumiu a secretaria em 1º de janeiro de 2019, quando João Doria tomou posse como governador de São Paulo. Até então, a diretora executiva da Amigos da Arte, que se chamava Associação Paulista Amigos da Arte (APAA), era Gláucia Vanini Costa. Três meses depois, em março, Danielle Barreto Nigromonte foi anunciada para o cargo e passou a comandar a organização.

A relação entre Nigromonte e Sá Leitão é antiga. A RioFilme, empresa da Prefeitura do Rio de Janeiro que apoia o mercado exibidor carioca, foi presidida por Sá Leitão por seis anos, entre 2009 e 2015. De janeiro de 2012 até dezembro de 2012, Nigromonte foi gerente de investimentos do órgão.

Em novembro de 2012, Leitão assumiu a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro e nomeou Nigromonte, no mês seguinte, como subsecretária da pasta. Até janeiro de 2015, o jornalista acumulou os cargos na RioFilme e o comando da pasta no governo carioca.

Em 25 de julho de 2017, Leitão assumiu o Ministério da Cultura do governo do ex-presidente Michel Temer. No dia 13 de dezembro do mesmo ano, o então ministro visitou Niterói, no Rio de Janeiro, para anunciar o edital de fomento audiovisual, uma parceria entre o município e o governo federal.

A ideia era transformar a cidade fluminense em polo de superproduções do audiovisual brasileiro. Na época, Nigromonte era subsecretária de Cultura da prefeitura niteroiense.

No período em que Sá Leitão foi ministro da Cultura, entre julho de 2017 e dezembro de 2018, o chefe de gabinete do ministério era o produtor cultural José Mauro Gnaspini, que hoje é diretor de arte e cultura da Amigos da Arte.  Ele também foi nomeado em março de 2019.

Gnaspini criou a Virada Cultural Paulistana (atual ViradaSP), que teve sua primeira edição em 2005. No ano de 2015, o Tribunal de Contas do Município sentenciou que os contratos estabelecidos pelo produtor cultural na edição de 2012, na gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), foram irregulares.

A decisão foi mantida em 2017 no julgamento do recurso interposto, inclusive com remessa da decisão ao Departamento de Polícia de Proteção à Cidadania (DPPC).

No período em que Gnaspini foi responsável pela Virada Cultural Paulistana, um nome se tornou comum entre os contratados para prestarem serviços ao evento: Francisco Azevedo, conhecido como Kiko, que hoje é gerente de comunicação da Amigos da Arte.

Em 2010, Kiko foi contratado por R$ 30 mil para criar a comunicação visual da Virada Cultural daquele ano. Na edição de 2013, Kiko foi contratado por R$ 40 mil para fazer o planejamento visual da apresentação do evento à imprensa, criação artística do mapa das atrações, folder e toten.

Aparelhamento

O deputado estadual Carlos Gianazzi (PSOL) apresentou uma representação no Ministério Público pedindo que o caso seja investigado. O parlamentar criticou a relação do secretário com os diretores da Amigos da Arte.

“Todos os indícios levam a crer que ele [Sá Leitão] aparelhou essa organização social, que tem um orçamento milionário. São R$ 150 milhões e, pelo menos, três pessoas trabalhavam diretamente com ele, são próximas. Estranhamente, após a entrada dele na secretaria, essas pessoas são nomeadas. Precisamos aprofundar as investigações, é muito solar e clara essa questão”, afirmou Giannazi.

Aparelhamento

Julio César Chaves, coordenador de Direito Público do WFaria Advogados, explica que a organização social “nasceu para melhorar um problema que a administração pública tem, que é a licitação”.

“A área da saúde, especificamente, não pode esperar [o tempo dos editais]. A OS pode driblar a burocracia e tornar o processo mais célere. Porém, essa burocracia tem uma razão, que é coibir esse tipo de abuso”, ressalta.

Para Chaves, existe na situação da OS Amigos da Arte, “a possibilidade de haver conflito de interesse.”

“O ponto é quando existe um vínculo extra muros da organização. Recomendamos aos nossos clientes, em licitação principalmente, que os gestores contratuais não tenham nenhuma relação com os ordenadores da despesa do órgão. Muitas vezes, por mais que não seja um nepotismo, acaba gerando um conflito de interesse”, explica.

Clóvis Bueno de Azevedo, formado em Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas (FGV), ressalta que o “pecado original” em relação às OS acontece quando o governo contrata organizações sociais que são dirigidas por grupos ligados politicamente a ele.

“Você já escolhe uma OS dirigida por quem você tem ligação política, isso implica em contratos não tão claros, eventualmente se paga preços mais caros, vão trabalhar nas OSs pessoas que são próximas do governo, tem um conjunto de imoralidades recorrentes”, ressalta.

Defesa

Em nota, a Secretaria de Cultura e Economia Criativa se defendeu. Por meio de nota enviada ao Brasil de Fato, a pasta afirma que “a direção da organização social Amigos da Arte foi nomeada por seu Conselho de Administração, conforme determina o estatuto da entidade”.

“Este Conselho é presidido pelo ex-ministro da Justiça José Gregori, referência em ética e direitos humanos no Brasil. A diretoria é composta por profissionais com vasto currículo na área de gestão cultural, que já trabalharam em diversas instituições públicas e privadas. Eles foram selecionados, avaliados e contratados pelo Conselho, com total independência”, diz a nota.

Ainda de acordo com a pasta, “o secretário Sérgio Sá Leitão já comandou empresas e instituições públicas e privadas que somam mais de 15 mil colaboradores. Não há impedimento legal ou ético para que uma organização social que mantém contratos com o estado de São Paulo contrate um desses 15 mil profissionais.”

Amigos da Arte

Firmado em julho de 2016, o contrato da Amigos da Arte com a Secretaria de Cultura e Economia Criativa se encerra em 31 de outubro de 2021. O valor total é de R$ 153 milhões, que são pagos em parcelas anuais de cerca de R$ 30 milhões. Entre as Organizações Sociais que atendem o governo paulista, somente a Fundação Osesp recebe mais, um total de R$ 255 milhões.

A Amigos da Arte administra o Teatro Sérgio Cardoso, o Teatro Municipal de Araras, e o Museu da Diversidade Sexual. Também é responsável pela organização da Virada Cultural, do Circuito Cultural Paulista e o Revelando São Paulo.

Trabalhadores da Amigos da Arte revelaram ao Brasil de Fato, sob anonimato, que as condições de trabalho “pioraram” com a chegada de Nigromonte ao comando da organização social e enfatizam que a gestão é mal avaliada internamente.

“Desde que essa nova diretoria assumiu, estamos com muito medo. A gente sabe que estão fazendo coisas erradas, hora contratam o amigo de um, o namorado da outra ou a namorada do outro. Temos receio de envolverem a Amigos da Arte num escândalo como foi o da Ancine [Agência Nacional do Cinema]”.

Segundo o trabalhador, que pediu para não ser identificado por receio de demissão, desde que a nova diretoria assumiu, “aumentaram as demissões, quem faz crítica é colocado na geladeira ou retaliado”. Ele relata ainda que, com a pandemia do coronavírus o contato entre os trabalhadores e a direitoria da empresa diminuiu e o conselho foi blindado de qualquer reclamação dos funcionários.

“A grande maioria tá insatisfeita mas a gente não tem a quem recorrer e, no final das contas, todo mundo precisa do emprego”, explica.

No começo de 2019, a Amigos da Arte mantinha 71 trabalhadores contratados no regime de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), 21 foram demitidos no decorrer do ano. Ao todo, a organização social gastou R$ 513 mil com os afastamentos.

Por outro lado, no mesmo período — exercício de 2019 –, os gastos com remuneração dos cargos de diretoria aumentou 84%, de R$ 554.825,00 para R$ 1.022.263,71, dado que chamou a atenção da própria Unidade de Monitoramento da Secretaria Estadual de Cultura em seu relatório anual referente ao Contrato de Gestão da Amigos da Arte, apontando a temeridade deste aumento “em um ano de crise orçamentária”. “No final do ano, pode fragilizar a previsibilidade das despesas do modelo de gestão por OS”, alertou a unidade.

No site da entidade, não há transparência sobre os valores de remuneração dos trabalhadores. Uma tabela com salários por cargo está disponível, mas sem nomes.

Centralização

O principal programa da Amigos da Arte para o período da pandemia no estado de São Paulo é o “Cultura em Casa, plataforma online onde artistas se apresentam ao público. A Organização Social contratou 120 projetos, sendo que 9% estão no interior e 91% na capital. Nenhuma iniciativa do litoral paulista foi contemplada.

Sobre a concentração de contratações na capital, a Amigos da Arte afirmou que “a questão da origem territorial do representante não é um quesito fundamental nessa escolha, o que não elimina que, em outras ações de difusão e fomento, a questão territorial seja legitimada e reverenciada”.

“Como exemplo citamos as chamadas públicas do Juntos Pela Cultura, onde consta em regulamento de algumas iniciativas que todas as regiões administrativas do estado de São Paulo devem ser atendidas para equalizar o atendimento e acesso”, diz nota enviada à reportagem.

Via Lei de Acesso à Informação (LAI), a Secretaria de Cultura e Economia Criativa, informou ao Brasil de Fato que o valor pago aos artistas foi de R$ 458 mil, com cachês que variam entre R$ 1 mil e R$ 10 mil.

Para o período da quarentena, a Amigos da Arte também preparou outras atividades, como o “Intensivão”, o “SP Gastronomia” e o “Diálogos Necessários”. A organização social informa que 469 profissionais, entre artistas, técnicos e estudiosos do setor cultural, foram contratados para as atividades”.

Entre os artistas, está Alexys Evagelous Anastasiou, o VJ Alexis, proprietário das empresas Visualfarm Produções Ltda e Paralax-Media Technology Ltda. O artista, que já foi contemplado em outros eventos da Amigos da Arte, recebeu R$ 367 mil para realizar projeções noturnas nos prédios do Teatro Sérgio Cardoso, do Hospital das Clínicas, e mais dois edifícios nos bairros da Santa Cecília e outro na Avenida Paulista, entre os dias 14 de abril e 28 de junho.

Alexis é o idealizador e integrante de outros projetos culturais particulares, ao lado de Gnaspini, o gerente de comunicação diretor de Arte e Cultura da Amigos da Arte, como do projeto “Natal Iluminado” e “Festival de Luzes”, que foram contratados pela Prefeitura de São Paulo durante os últimos anos.

Em dezembro de 2019, por exemplo, quando Gnaspini já era Diretor da OS que executa recursos públicos estaduais, o projeto de ambos foi contratado pela Secretaria Municipal de Cultura para projeções no Mosteiro de São Bento e na fachada do Edifício Matarazzo, por R$ 670 mil.

Em outubro de 2020, poucos meses após ter sido contratado pelos programas públicos estaduais da Amigos da Arte por Gnaspini, ambos voltam a aparecer na coordenação e curadoria do Festival de Luzes na capital paulista.

A Amigos da Arte afirma que “todos os contratos firmados pela entidade seguem os trâmites legais” e que “está à disposição do Ministério Público e responderá a todos os questionamentos dentro do prazo estiúlado”.

A Organização Social defendeu o trabalho realizado pela entidade durante a pandemia por meio da plataforma Cultura em Casa. A Amigos da Arte afirma que a plataforma “já possui 1,3 mil conteúdos disponíveis, vistos mais de 2 milhões de vezes por cerca de 700 mil pessoas, atingindo não apenas a população de São Paulo mas todos os demais estados do país”.

“O objetivo principal da plataforma é a ampliação da difusão cultural ao público de São Paulo e todo o país, considerando como diretriz o acesso à cultura como um direito humano básico e previsto também na Constituição Brasileira”, defende.

Outro lado

O Brasil de Fato procurou, via assessoria da Amigos da Arte, Danielle Barreto Nigromonte, José Mauro Gnaspini e Kiko Azevedo. Até o fechamento da matéria, os três não haviam se manifestado. Alexys Evagelous Anastasiou não foi localizado pela reportagem.