Sem pagar funcionários e sem brigada de incêndio, Cinemateca corre o risco de fechar. Por Gabriel Valery

Atualizado em 15 de julho de 2020 às 7:37
Cineastas e profissionais do audiovisual mobilizados em defesa da Cinemateca Brasileira

PUBLICADO NA REDE BRASIL ATUAL

POR GABRIEL VALERY

O funcionamento da Cinemateca Brasileira está sob risco. Funcionários sem salários há três meses pedem socorro. Mesmo o fornecimento de luz está prestes a ser cortado. Nesta semana, a instituição perdeu sua brigada de incêndio e deve perder os seguranças nos próximos dias. O local, que preserva 120 anos de história e a identidade brasileira em acervo audiovisual, não recebe verbas do governo federal, de Jair Bolsonaro, desde o fim do ano passado.

Em meio às ameaças, os trabalhadores e profissionais do cinema e do audiovisual realizaram ontem (14) um ato simbólico em frente ao local. A Cinemateca tem sede na Vila Clementino, bairro da zona Sul de São Paulo. Com respeito ao isolamento social necessário em tempos de pandemia de covid-19, manifestantes fizeram um “abraço” à instituição.

Entre os riscos, chama a atenção os perigos de incêndio. A entidade trata de materiais sensíveis. Sem refrigeração adequada, uma tragédia para a memória brasileira, aos moldes do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, assusta a comunidade. “Para manter a sobrevivência dessas imagens, a Cinemateca precisa de seus funcionários, precisa da energia elétrica para manter os negativos, os nitratos, que entram em combustão muito rápido”, disse à RBA a cineasta Tata Amaral.

A missão

Tata esteve no local para o ato e chama a atenção para a importante missão da instituição. “A Cinemateca é da maior importância para a cultura brasileira, para a sociedade brasileira. Ela não só preserva, guarda e armazena as imagens da nossa sociedade desde o final do século 19 até os dias de hoje, como também tem como missão manter a integridade”, disse.

Outra grande missão da Cinemateca, alerta a cineasta, é de “ativar o acervo. Para que as imagens dos filmes estejam na imaginação e no coração das pessoas. Além disso, recuperar imagens para que elas possam voltar a serem vistas. Tornar seu acervo acessível; seja por um catálogo, um índex mantido e atualizado, seja com digitalização permanente das imagens.”

Por fim, a cineasta lembra que o direito à identidade e à memória independem da orientação política de quem está no poder. “É um direito dos cidadãos, fundamental a preservação da Cinemateca. É um direito da sociedade e um dever de qualquer governo de zelar pelo patrimônio público.”

Sequência de erros

Após iniciar um movimento grevista no dia 12 de junho, os trabalhadores da Cinemateca passaram a se articular de maneira mais intensiva, e denunciar o descaso com a instituição. Agora, o estado de greve será mantido indeterminadamente, até que mínimas condições sejam garantidas.

Ataques à Cinemateca começaram no fim de 2019. Na época, o agora ex-ministro da Educação, o bolsonarista Abraham Weintraub, rompeu o contrato da instituição, com a fundação Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) e o governo. A entidade administrava a autarquia ligada à pasta. O governo usou argumentos considerados de caráter ideológico, como “combate à doutrinação e ao marxismo cultural”, entre outros.

De lá para cá, os repasses do ministério deixaram de ser realizados. A Acerp reclama de uma dívida de R$ 13 milhões com o Ministério da Educação. A verba não teria sido repassada à fundação para arcar com serviços básicos, como pagamento de funcionários e, até mesmo, manutenção predial.

Carta

O coletivo dos trabalhadores da cinemateca elaborou uma carta, um pedido de socorro. “O início do mês de julho de 2020 marca para nós, equipe técnica da Cinemateca Brasileira, o terceiro mês sem o recebimento de nossos salários e benefícios”, argumentam.

Confira a íntegra do texto:

O início do mês de julho de 2020 marca para nós, equipe técnica da Cinemateca Brasileira, o terceiro mês sem o recebimento de nossos salários e benefícios.

Durante esse período, cumprimos todos nossos compromissos trabalhistas, com exceção dos dois períodos em que estivemos em greve por tempo determinado – dia 12/06 e entre os dias 18/06 a 26/06. Em vão, tentamos nessas paralisações anteriores, um diálogo com a Diretoria da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), Organização Social gestora da Cinemateca Brasileira e da TV Escola. Os pedidos por respostas ou um plano de resolução para o imbróglio que se estende infelizmente não foram atendidos.

Além dos salários e das contas de água e luz atrasadas há 3 meses, a Cinemateca Brasileira começou recentemente a perder seus funcionários terceirizados, igualmente fundamentais para a manutenção do acervo e do espaço físico. As equipes de manutenção elétrica e climatização não mais dão suporte à Cinemateca Brasileira desde o dia 10/06. Os bombeiros, desde o dia 25/06.

Na próxima semana, as equipes já extremamente reduzidas de limpeza e segurança, sob aviso prévio, podem seguir o mesmo caminho, deixando a Cinemateca esvaziada, sem um corpo de funcionários mínimo que garanta sua correta salvaguarda. Aumentam-se, assim, os riscos de uma grande tragédia, fato que inclusive já vem sendo bastante noticiado pela mídia brasileira.

Diante desse quadro alarmante, iniciamos agora uma nova greve, dessa vez por tempo indeterminado a partir de hoje, dia 07 de julho de 2020. Seguimos mobilizados exigindo o pagamento dos salários devidos, um planejamento com estabelecimento de datas para a solução dos problemas pela Acerp, e que seu diretor-geral, Francisco Câmpera, se apresente para uma reunião com os trabalhadores e seu sindicato.

Reiteramos a necessidade de responsabilizarmos o Estado pela manutenção da Cinemateca, e não seus trabalhadores individualmente, e seguimos na luta pela sobrevivência financeira de nossas famílias e pela memória do audiovisual brasileiro.

Sem salário, sem trabalho.