
O artigo abaixo foi publicado no Brookings, descrito pela revista The Economist como “talvez o think-tank de maior prestígio da América”.
Por Valerie Wirtschafter e Ted Piccone (tradução de Edward Magro)
Enquanto milhares de manifestantes invadiram, na tarde de domingo, 8, as três principais casas do poder estatal em Brasília, os paralelos entre o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio dos EUA e os eventos que se desenrolavam na capital do Brasil eram inegáveis, e amplamente discutidos na mídia.
De muitas maneiras, essas comparações também eram totalmente previsíveis: o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro seguiu o manual do ex-presidente dos EUA, Donald Trump, durante grande parte de seu mandato. Ele ganhou destaque como um populista de direita combativo, não se intimidou em abraçar o autoritarismo, passou sua presidência reclamando de “notícias falsas” e fez repetidas e infundadas alegações de fraude destinadas a minar a integridade das eleições brasileiras. Ambos os países também experimentaram robusto declínio do estado de democrático direito durante seus respectivos mandatos.
Apesar do que, agora, parecia ser um final inevitável, nos meses após a derrota de Bolsonaro, observadores do Brasil estavam cautelosamente esperançosos de que uma transição pacífica de poder pudesse ser possível sem grandes incidentes – e, na maioria das vezes, foi. Após a eleição, Bolsonaro não reconheceu a derrota, mas autorizou a transição presidencial. Muitos aliados de Bolsonaro, eleitos na mesma eleição, sinalizaram seu compromisso de permanecer trabalhando na “oposição”. E embora os protestos pró-Bolsonaro em todo o país tenham sido constantes, as manifestações políticas no Brasil são bastante comuns e o setor de segurança frustrou, com sucesso, pelo menos um incidente particularmente preocupante.
É importante ressaltar que essas manifestações não pareciam caracterizar uma mobilização de cima para baixo, que caracterizou o rescaldo das eleições de 2020 nos Estados Unidos. Em sua última fala presidencial, Bolsonaro exortou seus apoiadores a aceitarem a realidade factual. Ele tentou encontrar um caminho a seguir dentro dos limites da Constituição, disse a eles, mas, no final das contas, “[nós] vivemos em uma democracia ou não… Ninguém quer uma aventura”.
Em meio à segurança reforçada e ladeado por cidadãos que representam a diversidade da população brasileira, Luiz Inácio Lula da Silva foi empossado no início deste mês como o 39º presidente do Brasil. Enquanto isso, Bolsonaro foi fotografado na Flórida, jantando no Kentucky Fried Chicken e fazendo compras na rede de mercearias Publix (cuja herdeira estava disposta a contribuir com até US$ 3 milhões para os protestos de 6 de janeiro). Essas imagens virais geraram piadas sobre o status do ex-presidente como “Floria Man”[1] temporário e levantaram questionamentos sobre sua decisão de fugir do Brasil antes de perder a imunidade para várias investigações judiciais.
Que uma insurreição violenta de apoiadores de Bolsonaro acabaria acontecendo em Brasília não é surpreendente, dados dois anos de advertência. Mas o fato de ter acontecido na data em que aconteceu – após a posse pacífica do presidente Lula e a saída de Bolsonaro do Brasil – a torna mais intrigante e distinta do ataque de 6 de janeiro ao Capitólio. Embora as instituições federais do Brasil tenham se mantido firmes e unidas contra as forças antidemocráticas, o que está claro agora é que a o autoritarismo encontrou um ponto de sustentação em um país que há 38 anos emergiu de um regime militar repressivo. Embora o papel direto de Bolsonaro – se houver – no ataque de domingo permaneça incerto, os valores autoritários que o precipitaram, aparentemente estão arraigadas entre um subconjunto da população, talvez mesmo sem o apoio explícito do ex-presidente.
UM TIPO DIFERENTE DE INSURREIÇÃO
À medida que o ataque se desenrolava em Brasília, o Congresso estava em recesso e os prédios federais estavam praticamente vazios. Concluída a transferência do poder, o ataque ao Superior Tribunal Federal, ao Congresso Nacional e ao Palácio do Planalto pareceu despropositada e sem organização clara. Embora os baderneiros oferecessem uma justificativa vaga sobre ocupar os prédios até que os militares interviessem para anular a eleição, eles pareciam mais preocupados em saquear os edifícios. Vídeos e imagens de apoiadores de Bolsonaro quebrando janelas, destruindo obras de arte, saqueando documentos do governo, ateando fogo em tapetes e até mesmo defecando em mesas circularam amplamente nas redes sociais, compartilhados pelos próprios depredadores. Houve até preocupações de que os apoiadores de Bolsonaro tivessem roubado a cópia original da Constituição Brasileira de 1988, o que mais tarde se provou ser apenas uma réplica.
Diferentemente dos Estados Unidos, as ações desses bolsonaristas não ameaçaram diretamente a vida dos eleitos ou buscaram interromper um processo constitucional. Mas representaram uma demonstração clara de seu desdém pela democracia, revelando os impulsos autoritários subjacentes que motivaram pelo menos alguns dos apoiadores do ex-presidente. Eles também destacaram o claro poder da desinformação para mobilizar, ainda que seja uma pequena fração de radicalizados, que com o apoio de milhares de partidários fanáticos cometeram atos violentos de destruição e desestabilização.
O mais alarmante nos acontecimentos de Brasília foi a total complacência do governo local e dos agentes da Segurança Pública do Distrito Federal (DF). Ao contrário de Washington, D.C., o governo do Distrito Federal — sede de Brasília — tem a função de governar tanto o Distrito Federal, quanto a cidade de Brasília, e as forças de segurança dentro do DF são responsáveis pela proteção dos prédios federais. No entanto, enquanto o ataque se desenrolava, os apoiadores de Bolsonaro encontraram uma resistência surpreendentemente limitada. Policiais – que estão entre os mais bem pagos do Brasil – foram flagrados conversando com manifestantes e comprando água de coco.
Antes da invasão, a Agência Brasileira de Inteligência (que se tornou altamente politizada) havia alertado o governo do DF sobre possíveis “atos violentos” devido a um número incomum de ônibus fretados com destino à capital e mensagens no Telegram, WhatsApp e outras redes online pedindo protestos menores em todo o país para ocupar Brasília. Embora houvesse um plano para conter os manifestantes, as autoridades distritais supostamente relaxaram, no último minuto, sua estratégia de contenção, apesar das ameaças detectadas pela inteligência. Embora o papel dos eleitos do DF nesses ataques seja atualmente uma questão em aberto, o agora demitido secretário de segurança pública e o afastado governador do Distrito Federal, ambos alinhados com o ex-presidente Bolsonaro, parecem ter ignorado esses alertas.
Embora o governo distrital tenha falhado ao enfrentar o desafio, as instituições federais brasileiras mais uma vez mostraram sua resiliência aos ataques antidemocráticos, apesar de sua relativa juventude. Imediatamente após a divulgação das invasões, Lula declarou intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal. Com aprovação do Congresso, isso permite ao governo federal controlar a segurança pública até o final do mês.

Ao lado de outras forças federais, os militares eventualmente intervieram, atraindo aplausos dos apoiadores de Bolsonaro, mas o fizeram apenas para expulsar os manifestantes de prédios federais (é importante ressaltar que vários oficiais militares teriam participado do vandalismo, mostrando claras divisões internas entre as forças armadas do Brasil). O Supremo Tribunal Federal também afastou rapidamente o governador do DF por 90 dias, enquanto se aguarda uma investigação sobre sua “dolorosa ausência” durante o ataque. Algo entre 200 e 400 pessoas foram presas imediatamente e, menos de 24 horas depois, o governo federal havia detido mais de 1.500 pessoas para interrogatório sobre envolvimento na tentativa de golpe, com mais prisões em andamento.
As investigações já começaram a identificar indivíduos que destruiram prédios federais, bem como descobriram redes de financiamento que ajudaram a fretar ônibus provenientes de todo o Brasil. Além disso as investigações levantarão a participação de servidores públicos. Precedentes torna viável a persecução de políticos, como o próprio Lula viveu após deixar a presidência em 2011. Um dia depois do atentado, os chefes dos três poderes do governo federal divulgaram “Nota em defesa da democracia”, um comunicado conjunto de solidariedade e “em repúdio aos atos golpistas”. Essa ação rápida se deve em parte ao fato de Bolsonaro não estar mais no poder e, consequentemente, não controlar as alavancas do governo federal. Também pode ser devido ao fato de que as ameaças de um possível evento no estilo de 6 de janeiro foram antecipadas há muito tempo, principalmente devido ao aviso de Bolsonaro de que seu futuro trazia uma das três opções: “ser preso, morto ou vitória”.
O CAMINHO PARA A RECUPERAÇÃO
Apesar da desaprovação pública generalizada do ataque no início desta semana e de uma onda de manifestações pró-democracia após o motim, seria imprudente celebrar a tentativa fracassada de golpe como uma sentença de morte do bolsonarismo ou das forças antidemocráticas no Brasil. Afinal, ambos encontraram bases sólidas mesmo sem o apoio explícito do ex-presidente. Embora as recentes eleições presidenciais possam ter revitalizado a capenga democracia brasileira, a presidência de Bolsonaro causou sérios danos ao minar a percepção de legitimidade das instituições democráticas e dos processos eleitorais.
À medida que o povo brasileiro avança após o ataque sem precedentes, a experiência dos EUA oferece um plano não muiito perfeito a seguir, ou uma oportunidade de traçar um curso diferente. Embora o Departamento de Justiça dos EUA tenha continuado a processar com sucesso os insurgentes de 6 de janeiro, até agora os altos escalões do círculo de Trump escaparam da responsabilidade e continuam sendo uma força poderosa no novo Congresso dos EUA. Os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023, de algum modo já colocaram o Brasil em uma trajetória própria, diferente.
No entanto, algumas semelhanças claras permanecem. O hiperpartidarismo, a erosão da confiança na mídia tradicional, a desconfiança nas eleições e as vitórias apertadas de Biden e Lula representam desafios claros para ambos os presidentes. Com a visita de Lula a Biden em Washington, agendada para o início de fevereiro, e com os dois líderes reafirmando seu compromisso com um “diálogo permanente para fortalecer a democracia”, Brasil e Estados Unidos têm uma importante – e talvez existencial – oportunidade de colaboração.
[1] “Florida Man” é um meme da Internet popularizado pela primeira vez em 2013 que se refere a uma suposta prevalência de homens realizando ações irracionais, estúpidas ou absurdas no estado americano da Flórida. Usuários da Internet normalmente postam links para notícias e artigos sobre crimes incomuns ou estranhos e outros eventos ocorridos na Flórida, com as manchetes das histórias geralmente começando com “Florida Man …” seguido do evento principal da história.