Sequenciar coronavírus só foi possível com investimento público, diz cientista. Por Catarina Barbosa

Atualizado em 5 de março de 2020 às 11:43
Da direita para a esquerda: Jaqueline goes de Jesus, Flavia Salles, prof.a Ester Sabino, Erika Manuli e Ingra Morales claro – Arquivo Pessoal/Ingra Morales Claro

Publicado originalmente no site Brasil de Fato

POR CATARINA BARBOSA

O Brasil registrou no dia 26 de fevereiro o primeiro caso de coronavírus, se tornando o primeiro país da América Latina a registrar um caso da epidemia.

Na última terça-feira, o subsecretário de Vigilância em Saúde, Wanderson de Oliveira, anunciou que até o momento foram registrados 488 casos suspeitos da doença. Até o momento, o Brasil confirmou três casos da epidemia, todos em São Paulo.

O relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), da última segunda-feira aponta que o Covid-19 está presente em 64 países e a taxa de letalidade é de 3,4%.

Pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz (IAL) e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP), instituições públicas sediadas em São Paulo, realizaram o processo de sequenciamento do vírus, 48 horas após a confirmação do primeiro caso.

“Logo que apareceu o primeiro caso positivo, nós já estávamos com tudo preparado, a equipe inteira estava preparada. Então, foi feito o sequenciamento em tempo real. A gente já foi analisando, enviando os dados para a universidade de Oxford, universidade de Edimburgo e Birmingham e o grupo inteiro conseguiu fazer isso mais rápido possível para que a gente conseguisse  liberar esse resultado em 48 horas”, relata a biomédica Ingra Morales Claro, de 28 anos.

Biomédica e aluna de doutorado da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), ela integrou a equipe liderada pela professora Ester Sabino e composta por nove mulheres e um homem.

“A gente passa por dificuldades nesse mundo machista, mas nós somos mulheres, inteligentes, cientistas. Então, é um grupo muito maravilhoso composto de mulheres maravilhosas, liderado pela professora Ester, que é a nossa inspiração dentro do laboratório”, ressalta.

A pesquisadora destaca a importância do incentivo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para o trabalho sequenciamento do genoma e reforça a necessidade de investimento governamental para esse trabalho.

“A gente tem incentivo de um projeto que chama Cade [Centro de Diagnóstico Distribuição Genômica e Epidemiologia de Arbovírus], da Fapesp. Só com esse dinheiro é possível a gente trabalhar com essa tecnologia esse tempo todo. A gente sempre teve incentivo da Fapesp e todas as alunas que participaram do sequenciamento genômico têm bolsa. Então incentivo governamental e investimento em pesquisa é a parte mais importante nesse momento”, ressalta.

Em entrevista ao Brasil de Fato, ela falou da função do sequenciamento genômico e a importância dele em casos de epidemia assim como o reconhecimento do papel da mulher cientista.

Brasil de Fato: O grupo de vocês constituído, praticamente, por mulheres. De que forma isso está sendo percebido pela equipe? 

Ingra Morales Claro: O grupo da professora Ester Sabino, que é a nossa orientadora e coordenadora desse projeto do CADE, no Brasil, é composto por nove mulheres e um homem. A gente está muito feliz por esse reconhecimento da mulher cientista. Estamos recebendo muitas mensagens de pessoas que estão perguntando como é ser uma mulher dentro desse rumo da ciência e um monte de meninas, que estão ingressando agora é na ciência estão se espelhando na gente. Então, está sendo muito gostoso ver isso e poder passar para as mulheres do Brasil, de que a gente passa por dificuldades nesse mundo machista, mas nós somos mulheres, inteligentes, cientistas. Então, é um grupo muito maravilhoso composto de mulheres maravilhosas, liderado pela professora Ester, que a nossa inspiração dentro do laboratório.

Como foi o processo de trabalho, específico, para o sequenciamento do coronavírus?

A gente conseguiu estar preparado para essa epidemia do Corona. A gente já estava junto com o Instituto Adolfo Lutz analisando os casos suspeitos e logo que apareceu o primeiro caso positivo, nós já estávamos com tudo preparado, a equipe inteira estava preparada. Então, foi feito o sequenciamento em tempo real. A gente já foi analisando, enviado os dados para a universidade de Oxford, universidade de Edimburgo e Birmingham e o grupo inteiro conseguiu fazer isso mais rápido possível para que a gente conseguisse se liberar esse resultado em 48 horas.

Quando o Brasil passou a realizar o sequenciamento genômico?

Desde 2016 quando teve epidemia do vírus zika, no Brasil, a gente recebeu um pesquisador da Universidade de Birmingham no nosso instituto e ele trouxe essa tecnologia, que chama MinION, que é um sequenciador portátil. Eu aprendi essa tecnologia em 2016. Participei de um projeto que chama Zibra, no qual a gente viajou pelo Nordeste, dentro de um miniônibus e sequenciou o genoma do zika dentro desse ônibus. Desde então nosso instituto vem utilizando essa tecnologia.

Esse sequenciamento foi utilizado para quais doenças no país? 

Epidemias de dengue, febre amarela, chikungunya e zika. A gente vem utilizando e aprimorando o protocolo de sequenciamento, eu mesma passei alguns alguns meses na universidade de Birmingham trabalhando nisso para que a tecnologia ficasse mais rápida e mais barata e trouxe aqui para o Instituto.

Qual é a importância do sequenciamento genômico? 

O sequenciamento nos dá informações importantes sobre o vírus. A gente consegue ver as mutações, que vão acontecendo nesse genoma de pessoa para pessoa. A partir daí, a gente consegue analisar a dispersão do vírus porque conforme o tempo e local, a gente consegue analisar essas mutações e utilizar esse genoma depois para fazer vacinas, produção de medicamentos e produção de testes-diagnósticos. Então, a gente tem diversas informações que são geradas a partir do sequenciamento genômico.

De que forma o sequenciamento ajuda na contenção de uma epidemia como no o caso do coronavirus? 

A gente está utilizando bastante hoje para ver essa distribuição da epidemia. Somente com sequenciamento genômico a gente pôde saber que a nossa sequência era similar com a sequência da Alemanha e a segunda com a sequência da Inglaterra. Só essa tecnologia nos permite observar isso.

Quais os tipos de apoios são necessários para a ciência brasileira para que se permita o sequenciamento?

Sequenciamento genômico é uma tecnologia ainda cara no momento. Isso é o que a gente vem trabalhando. Conforme os anos, ela vem diminuindo muito o preço, mas ainda é uma tecnologia cara para que seja utilizado em centros de pesquisa de diagnósticos brasileiros.

Essa é a nossa ideia, fazer de uma forma menos complexa, mais barata, em distribuir essa tecnologia para todos os centros do Brasil, para que todo mundo possa usar, mas mesmo assim ainda continua sendo cara em comparação com outros testes diagnósticos.

Vocês recebem algum apoio do governo?

A gente tem incentivo de um projeto que chama Cade [Centro de Diagnóstico Distribuição Genômica e Epidemiologia de Arbovírus], da Fapesp. Só com esse dinheiro, é possível a gente trabalhar com essa tecnologia esse tempo todo. A gente sempre teve incentivo da Fapesp e todas as alunas que participaram do sequenciamento genômico têm bolsa. Então incentivo governamental e investimento em pesquisa é a parte mais importante nesse momento.

Para produção de vacina e medicamentos sempre é usado o sequenciamento ou é só um dos caminhos?

Não sou muito especializada nessa área de vacina e medicamentos, mas eles utilizam, sim, o sequenciamento genômico. Porque se o vírus sofre uma mutação específica em algum lugar,  alguns medicamentos às vezes param de funcionar. Nesse caso tem que fazer um novo medicamento. É necessário essa sequência genômica para analisar esses genomas e ver essas mutações, para ver se o medicamento e a vacina ainda são eficientes para aquele vírus.

Acredita-se que a maior compatibilidade do material genético do coronavírus foi com um vírus sequenciado na Bavária, Alemanha. Isso quer dizer que a contaminação foi na Alemanha? Ou é só um indicativo? 

Isso é só um indicativo, nos mostra que é similar, a sequência gerada da Bavaria, da Alemanha, mas não quer dizer que veio da Alemanha, porque as sequência são geradas e as mutações vão acontecendo conforme o tempo. Então, para a gente indicar que veio mesmo da Alemanha, da Bavaria, de algum paciente por exemplo contaminado, a gente precisaria, nesse caso, ter sequenciado todos os casos positivos, assim a gente conseguiria rastrear essa disseminação, mas como a gente não tem esses dados, a gente não pode firma isso.

Quais são as outras formas de identificar a origem do vírus? 

A gente consegue afirmar por histórico do paciente, por exemplo. Esse paciente teve contato com paciente da Alemanha e foi contaminado por esse paciente, o que foi o caso das nossas sequências. A gente sabia que o paciente veio da Itália. Ou então, teria que ter todos os casos positivos sequenciados, assim a gente conseguiria saber totalmente a disseminação desses casos.

Essa questão da mutação é uma das características do vírus que faz com que ele se torne uma epidemia? 

As mutações sempre ocorrem em um vírus, principalmente vírus de RNA, que é esse caso. Quando uma pessoa é infectada, esse vírus começa se replicar dentro do nosso organismo e sempre vai sofrer uma mutação conforme essa replicação.

Cada vírus tem uma taxa mutacional diferente, mas isso é muito comum acontecer, por isso que a gente consegue fazer todas essas análises e por isso também que esses novos vírus vêm sempre aparecendo, por causa de mutações que às vezes infectavam apenas animais e aí no caso sofreu uma mutação e começou a ser transmitido para humano.

Os vírus que atacam o sistema respiratório são os que sofrem mais mutações?

Para responder com mais propriedade eu precisaria analisar a taxa mutacional de cada vírus. Mas o influenza é mais mutável que o coronavírus, por exemplo, e outros tipos de vírus como o arbovírus, que são os vírus transmitidos pela picada de um mosquito que também sofre muitas mutações. Para analisar isso com toda certeza é preciso analisar vírus por vírus e analisar a taxa mutacional deles.

A sequência obtida por vocês têm qual porcentagem de cobertura? Isso já configura um genoma completo do coronavírus que está no Brasil? 

O primeiro genoma a gente obteve 96% de cobertura e o segundo genoma 100% de cobertura. Isso nos dá o que a gente chama de genoma completo do vírus. No primeiro caso a gente teve uma porcentagem um pouco menor, porque a carga viral que o paciente apresentava era um pouco menor do que a do segundo paciente e isso dificulta a amplificação do genoma nos testes que a gente faz.

O sequenciamento foi feito com a colaboração remota de pesquisadores das universidades de Birmingham, Edinburgh e Oxford, no Reino Unido. Como é esse trabalho remoto? 

A gente tem esse grupo, Cade, em que a gente trabalha em conjunto já há alguns anos: a USP, Universidade de Birmingham e Universidade de Oxford. No momento do sequenciamento, a gente estava com eles via computador. Tudo que ia sendo gerado, a gente ia passando para eles. Então, foi um grupo na verdade que conseguiu fazer esse resultado rápido.

De que forma  essa parceria de vocês contribui para a sociedade e a saúde das pessoas? 

Essa é uma parceria muito importante para nós. Sempre foi, desde 2016. Se não fosse com essa parceria a gente não teria  aprendido a tecnologia, não teria passado essa tecnologia para outros institutos, não teria trabalhado em conjunto, aprimorado as análises, os protocolos, não teria esse investimento todo que a gente vem tendo nas pesquisas que a gente vem fazendo.

A gente tem essa parceria, então conta com grandes pesquisadores e pesquisadores muito importantes de Oxford como o Nuno Faria de Birmingham, entre outos. Eles passam para gente esse conhecimento, a gente vem trabalhando com workshops para ensinar isso tudo que a gente vem aprendendo. Então, é muito importante porque a gente está fazendo cooperação de tecnologias e a gente está tentando passar isso tudo para os institutos de pesquisa e diagnóstico aqui no Brasil.

Podemos dizer que esse sequenciamento é uma forma de conter a epidemia? 

Ele não conteria a epidemia, mas ajudaria a estudar a epidemia melhor. No caso da Febre Amarela, por exemplo, a gente ia analisando os casos e conseguia fazer estudos matemáticos para ver em quanto tempo essa epidemia chegaria em um outro lugar. Ver essa disseminação pelas cidades para ver a questão de vacinação, qual era a cidade que tinha o maior risco, que precisava de vacinação o mais rápido possível. Em casos de epidemia o sequenciamento genômico é importante por causa disso.

Quais são os tipos de vírus que existem? 

Nós temos vírus de RNA e DNA. RNA é quando é uma fita única, DNA é quando dupla fita. Então, a gente tem, apenas, uma fita do vírus contendo material genético e por isso que eles precisam de algum hospedeiro para eles se replicarem.

Os dois vírus são parasitas? 

Os dois vírus tanto DNA, quanto RNA são parasitas obrigatórios, então, eles precisam da nossa maquinaria para  poderem se replicar. No caso, o RNA tem uma única fita, então, ele replica dentro do nosso organismo, utilizando a nossa maquinaria e tem uma probabilidade maior de sofrer mutações, quando comparado com o de DNA.

Exemplos de vírus de RNA, são o influenza,  o corona, alguns arbovírus como o zika, dengue e chicungunha e de DNA a gente tem, por exemplo, o herpes.