Publicado originalmente no ConJur:
Por Lenio Luiz Streck
1) Uma pesquisa necessária: uma epistemologia da estultice?
Todos já devem ter lido os conselhos que um pai dá ao seu filho Janjão ao completar 21 anos: você que tem inópia mental, será um medalhão. Em síntese, o pai diz ao seu filho que ele será um idiota com chances de se dar bem. Confiram no conto “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis.
Preocupados em medir a burrice humana, um pool de universidades (Shimun University, Scheißwald Universität e Universidad de Matocagao III) e institutos (Imperial Instituto Brás Cubas e Navah Institute) está pesquisando o tema.
Na verdade, o disparo foi dado pela foto acima. Ficaram assustados. Os pesquisadores acharam que estava na hora de pesquisar o assunto. Com efeito, pouco ou nada se sabe acerca dos limites da burrice e da inópia. Há muita opinião fruto de intituivismo, mas não há dados empíricos concretos.
Miremos bem a foto. Os pesquisadores ficaram horas observando-a. Ainda não se sabe como será realizada a pesquisa. Os cientistas sabem que há dados objetivos, como o da foto, que podem dar o start. Um dos cientistas sugere voluntários e pessoas pesquisadas passivamente. Isto é, os voluntários serão analisados em blind review (uma parte recebe fake news e outra parte a mesma notícia trocando apenas os personagens). Outros serão analisados sem que saibam — o problema será ao final conseguir a autorização dos pesquisados. Ou se saberão entender o que assinarão.
Também será feita uma pesquisa sobre se é possível apreender a ser burro. Isto é: seria burrice uma ciência? Voluntários serão submetidos a aulas com currículo como “negacionismo I, II e III”, “formação de grupos de WhatsApp I, II e III” e coisas desse jaez. Ao final, a pesquisa buscará responder à pergunta: o participante saiu mais burro do que entrou? Outra equipe analisará simplesmente alunos de algumas faculdades, como participantes passivos. No Direito isso será muito mais fácil de fazer.
O texto-base para o pool que fará as pesquisas é “Teoria do Medalhão”, de Machado. Haverá teste sobre o conto. Aquele participante que não entender já irá para a classificação sênior. Pulará etapas.
2) Da ficção à realidade
Fazendo uma epistemologia sobre a imagem acima e falando, agora, a sério, digo que não concordo com a frase “uma imagem vale mais que mil palavras”. Uma palavra é que vale mais que mil imagens.
Sim. Mas, todavia, porém, contudo, entretanto… Palavra já não há. Vejam de novo, por favor, a imagem.
O que dizer? “No hay banda”, como em “Mulholland Drive” (D. Lynch). Mas mesmo assim… Ouvimos a banda tocar. E segue esse espetáculo diário da barbárie.
Uma democracia tão jovem que logo já se transformou em um arremedo de pequenos Leviatãs. E se todos são Leviatãs, se todos são auctoritas — rejeitam o Direito, a ciência, a astronomia, só aceitam a própria autoridade num empirismo mequetrefe —, não há legem: só há um estado de natureza piorado.
Pior: uma democracia jovem atacada de dentro por pequenos Leviatãs, a partir de seus próprios fundamentos. Porque é isso. A “liberdade de expressão” usada para atacar o Supremo Tribunal do país, o Parlamento, as instituições. A “liberdade de ir e vir” usada para infectar os outros sem máscara por aí. E se exibir dando tiros. E ameaçando ministros do STF de impeachment(?). E fazendo passeatas buzinando na frente da casa de ministros. E quando um sujeito desses é processado, diz que está doente, usa remédios e que está arrependido. E grita pela liberdade de imprensa. Para poder a extinguir…
Como chegamos a esse ponto? Como é possível que tenha virado normal a cena de um policial tirando foto de um reacionário pedindo “julgamento militar” (sic) para ministros do STF? Julgamento militar? Baseado em quê? Como assim? Do que esse sujeito está falando? E o policial achou bonito? Palavra, que falta me faz. Que nada seja onde fracassa a palavra, dizia meu poeta preferido. E a máscara? O policial errou duas vezes. E outro é conivente. E os de trás, que olham a cena, são cúmplices.
Mas sabem o que é pior? Temos culpa nisso. Uma imprensa sem critério, que fez — e faz — pouco caso do discurso público e, em geral, sempre quis impor suas próprias narrativas de momento sobre quaisquer critérios compartilhados. Antes do julgamento das ADCs, a imprensa dizia: “Vão liberar 190 mil criminosos”… E faculdades, nos mais variados cursos, formando fascistoides. Muitos janjões.
E aí há não há discurso público. Não temos uma linguagem compartilhada. Não falamos as mesmas coisas. Na nossa Babel, é aceitável vermos cenas como essas. Porque perdemos a capacidade de comunicação. E de indignação. Prova disso é a inutilidade desta coluna. O sujeito da foto é que está certo, dirão alguns.
O filósofo Heidegger chamava a isso de Gerede, tagarelice. Falatório. O dito por aí. “Dizem que…”. A repetição em jargão daquilo que só faz sentido num contexto que já não existe mais. “Democracia”, “AI-5”, “julgamento militar”. Essa gente nem sabe o que é isso. São slogans para demonstrar apoio a alguma coisa. Não falam nos conceitos de verdade. Só falam sobre o que é dito como tal.
O problema é que só há falatório. E aí quem tenta reconstruir a história institucional do nosso vocabulário é que está errado. Claro: num país de fugitivos, como é visto quem anda na contramão?
O solipsismo venceu. O homem comum, o solus ipse, o viciado em si mesmo, ganhou a parada.
Como em Kafka, a arma mais mortal das sereias hoje só pode ser o silêncio.
E estamos tão perdidos que Kafka hoje, fosse ensinado nas escolas, teria perdido seu caráter de absurdidade.
Alô Atwood, Orwell, Huxley: nossa distopia é verdadeira e é um mundo em que falar sobre distopias já virou quase Gerede. Puro falatório.
É ou não é kafkiano?
Por isso, a tal pesquisa desse pool, de mera ficção aqui desenvolvida, pode se tornar realidade. E pode trazer respostas para tanta perplexidade.