Série do History Channel mostra casos de tortura da ditadura e trata como “disputa política”. Por Donato

Atualizado em 2 de março de 2020 às 18:31
A ditacuja

Tony Rangel, produtor de Investigadores da História, seriado do History Channel cujos episódios trazem alguns dos crimes cometidos durante a ditadura, declarou o seguinte:

“A gente não tem nenhuma tendência, nem de esquerda nem de direita. O que seria mais tendencioso a gente deixa de fora. A gente nem usa o termo ‘ditadura’, a gente usa ‘regime militar’. Se foi ditadura ou não, isso é polêmica hoje”.

Dei-me ao trabalho de conferir a série. Como eles tratariam de torturas e crimes da ditadura, sem dizer ‘ditadura’?

É muito pior do que afirma nosso isentão aí acima.

O seriado é uma aula sobre como abordar um tema evitando o âmago da questão.

Investigadores da História tem o formato desses programas americanos com o mesmo mote de investigação criminal. Há um caráter científico e repleto de recursos que só estão disponíveis para atrações televisivas e cinematográficas, mas que a realidade desconhece, pois nem para a gasolina das viaturas tem dinheiro.

O programa passa liso pela análise política. O malabarismo é grotesco.

No episódio sobre a morte de Juscelino Kubtischek, no qual chega-se à conclusão de ter sido um acidente de trânsito, a narração diz que o país vivia “um momento político delicado”. “Delicado”, veja você. É de uma delicadeza ímpar cunhar a ditadura como “momento delicado”.

Na noite de ontem, o caso retratado na série foi a morte de Higino João Pio.

O primeiro prefeito de Camboriú foi preso e depois “encontrado” enforcado no banheiro de sua cela.

A cena era tão pitoresca quanto a de Vlado Herzog. Seus pés tocavam o chão e o nó feito no ponto fixo não seria suficiente para suportar o peso de um homem.

Higino tinha sido morto e estrangulado dentro da Escola de Aprendizes Marinheiros, em Florianópolis, e só então colocado em situação que simularia um suicídio através de enforcamento.

Qualquer criança mataria aquela charada, mas façamos jus aos peritos do programa. Valeram-se de todas as análises e testes para desmentir a versão oficial amparada no laudo necroscópico que apontava como causa do falecimento o suicídio.

O narrador então afirma que, durante as investigações dos profissionais do seriado, buscou-se “tentar entender o contexto político da época”. Oi?? Tentar entender? A quantas aulas de história eles faltaram na escola?

Mas tudo bem, vamos ver o que encontraram. Daí vem a desfaçatez num curto e simplista “disputa política”.

E é assim o tempo todo. Era um “período de fortes desavenças políticas”, um cenário em que havia “disputa política”. Sempre em cima do muro.

Estávamos no auge da ditadura, apenas três meses depois do AI-5. Que disputa política? Estávamos sob um regime autoritário militarizado. Não tinha disputa nenhuma, quem era de esquerda era levado em peruas Veraneio sem identificação e aparecia “suicidado” depois, isso quando o corpo aparecia.

Higino Pio era um socialista, democrata, prefeito pelo Partido Social Democrático, próximo de Jango.

Tinha sido denunciado por corrupção (pra variar) e seu processo não encontrava consistências. Já tinha sido inocentado em primeira instância.

Foi perseguido e acusado de doar terrenos da prefeitura para construção de casas populares. Que corrupto, hein.

Sem ter mais como inventar nada, os milicos pegaram-no a força e o mataram. Isso é “disputa política”? Eu chamaria de disputa paleolítica.

Esse seriado causa um enorme desserviço. Ele exemplifica porque, com esse método covarde de “nem esquerda nem direita”, existe tanta gente que afirme que a ditadura não existiu, que é “polêmico”.

Faça um teste: assista um episódio com um leigo, preferencialmente com alguém educado em escola particular – dessas que não pretendem contrariar sua clientela e que, quando abordam os anos de chumbo, o fazem muito en passant e chamam-no de “revolução de 64” – e pergunte sobre o que trata o programa. Verá como os produtores da série são eficientes na arte do escapismo.

A história precisa contar a verdade sem subterfúgios, sem isenção hipócrita.

Essa narrativa cínica, financiada com recursos públicos, endossa o discurso monstruoso de Bolsonaro que afirmou que “denúncias de tortura são cascata para ganhar indenização”.

Sim, ele disse isso no sábado, referindo-se à rejeição pela Comissão da Anistia de pedidos feitos por camponeses militantes do PCdoB do Pará que alegam terem sido alvo de perseguição do Exército durante o período “delicado”.

A História com H maiúsculo e feita com didatismo deveria adotar a biografia de Marighella escrita pelo Mario Magalhães. Deveria contar o que foi a ditadura, revelar o número de mortes, os métodos aplicados e quem os praticava.

Mas educar falando a verdade passou a ser entendido como doutrinação. Assim fica complicado.