Sexo, poder e morte na China

Atualizado em 21 de julho de 2012 às 9:38
Bo Xilai e Gu Kailai nos bons tempos

 

Este artigo foi publicado, originalmente, na revista Playboy.

 

EM NOVEMBRO de 2011, um homem foi encontrado morto em um hotel de Chingqing, uma cidade de cerca de 30 milhões de habitantes no sudeste da China. Era um caso, aparentemente, simples. A causa da morte, segundo a polícia, foi excesso de bebida. O coração da vítima – um britânico de 41 anos chamado Neil Heywood, radicado fazia muito tempo na China  – não teria aguentado uma bebedeira particularmente pesada. Casado com uma chinesa, com quem teve dois filhos, fluente em mandarim, Heywood ganhava a vida – pelo menos oficialmente – dando consultoria a empresas ocidentais interessadas em fazer negócios na China. Heywood foi cremado sem que tivesse sido feita uma autópsia. A polícia de Chingqing, uma região conhecida pela força e pela fúria do crime organizado, já dera a história da morte de Heywood por encerrada.

Mas um fato não se encaixava no quadro: Heywood quase não bebia. Numa missa rezada em Londres em sua memória pouco tempo depois da morte, amigos britânicos de Heywood comentaram entre si que alguma coisa parecia estar errada. Muito errada. Eles jamais o tinham visto ficar bêbado. A informação chegou à diplomacia britânica na China. Os ingleses fizeram um apelo ao governo chinês para que o caso fosse reaberto. Foi – e o que emergiu então foi enredo sensacional que chacoalhou a cúpula do poder na China. Pessoas de todas as partes todo vêm acompanhando, fascinadas, cada desdobramento de um caso que mistura espetacularmente poder, sexo, dinheiro e morte no país que corre velozmente para se tornar a superpotência número 1 do mundo.

No centro da trama está a relação especial que Heywood construiu, na China, com Gu Kailai, a cosmopolita e brilhante mulher do líder chinês que parecia destinado ao topo do poder – o carismático Bo Xilai, 61 anos. Membro do Comitê Central do Partido Comunista, o órgão supremo da China desde a revolução liderada por Mao Tsetung em 1949, Bo era uma estrela em ascensão desde que cumprira exemplarmente – ou assim parecia – uma missão que lhe fora confiada: instalar-se em Chongqing para extirpar o crime organizado. As máfias tinham corrompido até a Justiça local. Num único ano, em 2009, Bo comandou a prisão de quase 5 000 pessoas. O sucesso em dobrar enfim os joelhos das máfias de Chongqing ampliou consideravelmente as perspectivas de Bo de escalar o poder dentro do Comitê Central: ele deixou de ser visto como um a mais entre os 25 integrantes.

Bo, a partir da limpeza feita em Chongqing, tinha as credenciais certas para vôos napoleônicos no interior do poder na China – mas a mulher errada. A reabertura das investigações sobre a morte de Neil Heywood logo colocou fim à versão da bebedeira fatal. Heywood, segundo a polícia chinesa, foi na verdade forçado a beber veneno em seu quarto de hotel em Chongqing.  A suspeita do mando imediatamente recaiu sobre Gu Kailai, a mulher de Bo – uma advogada de primeira linha que, numa passagem pelos Estados Unidos numa missão profissional, foi definida por um americano que a conheceu como a “Jacqueline Kennedy” chinesa, tal sua inteligência e tamanho seu charme delicado.

Gu, 53 anos, oito menos que o marido, foi presa. Pode ser executada, caso seja julgada culpada. Bo, ao mesmo tempo em que a mulher seguia para a cadeia, foi destituído de todas as funções no Partido Comitê, acusado de “graves violações de disciplina”. Não se sabe exatamente qual a natureza de tais infrações disciplinares. Algumas especulações sugerem que, por trás da fachada de carrasco dos corruptos, Bo acumulou clandestinamente uma fortuna considerável. Seu filho, estudante em Harvard, teria uma vida “principesca” no exterior, segundo essas versões. Teria sido visto circulando numa Ferrari. (O filho nega: diz que jamais andou de Ferrari, e que está em Harvard graças a uma bolsa.)

Chongqing: o local do crime e a base do poder de Bo Xilai

O que parece certo, em meio à tempestade de rumores que se seguiu à prisão de Gu Kailai, é que a acusação mais grave que pesa sobre o líder caído em desgraça é a de obstrução de justiça. Essa impressão se reforçou depois que o braço direito de Bo Xilao em Chongqing, Wang Lijun, procurou um consulado americano em busca, segundo tudo indica, de proteção.  Wang – de paradeiro ignorado – estaria com medo de ter o mesmo fim de Heywood.

Fontes da polícia chinesa dizem que ele informou a Bo que sua mulher estava envolvida na morte do britânico. A partir dali, Bo teria tornado a vida de Wang um suplício com perseguições e ameaças  – provavelmente no esforço de abafar um escândalo que arruinaria sua carreira política. O governo chinês afirmou que este caso mostra a determinação do país em “eliminar a corrupção” – uma praga milenar na China. Um editorial de um jornal ligado ao governo frisou que ninguém, por maior que seja a patente, está acima da lei. Bo Xilao, de acordo com as evidências, se comportou como se estivesse – e provavelmente tinha motivos para acreditar nisso. Não fosse a explicação bisonha para a morte de Heywood – uma bebedeira para quem não bebe – o assunto teria desaparecido.

 

Heywood: na China encontrou riqueza, poder -- e a morte

Heywood foi para a China, como tanta gente, para participar de alguma forma do crescimento prodigioso do país. Ele começou dando aulas de inglês. Numa escola, Heywood teve como aluno o filho do casal Bo e Gu. Acabou se tornando uma espécie de consultor dos dois para a educação do filho no exterior. Heywood se movimentou para conseguir uma vaga para o garoto na mesma escola londrina em que estudara, a tradicional Harrow, de quase 500 anos – pela qual passaram personalidades inglesas como Winston Churchill, primeiro ministro britânico de papel crucial no combate a Hitler na Segunda Guerra Mundial.

Heywood mudou de patamar depois que consolidou relações com Bo e Gu. As aulas ficaram para trás. Ele começou a dar consultoria para empresas como a Rolls Royce e a Aston Martin em suas operações na China. Gu Kailai era sua sócia, e talvez Bo também – é uma das hipóteses que estão sendo investigadas agora.  É possível que, além dos negócios ortodoxos, houvesse outros, como a transferência para fora da China de dinheiro acumulado ilicitamente por Bo e Gu. Chegou a correr o boato de que Heywood era, na verdade, um espião da Inglaterra na China, coisa que o governo britânico negou cabalmente.

São fortes os indícios de que Heywood em algum momento se tornou, além de sócio, amante de Gu. Nas reconstruções que vão sendo feitas, ela aparece como uma mulher deixada de lado por um marido ávido por colecionar jovens amantes ao estilo de seu ídolo, Mao. Um jornal inglês afirmou que Heywood e Gu chegaram a viver maritalmente num apartamento em Londres. Um acadêmico de Chongqing com bom trânsito no antigo círculo de Bo na cidade concedeu ao jornal Times de Londres uma entrevista na qual disse não ter dúvida de que havia sexo no caso. “Claro que Bo e Gu gostavam de posar como um casal perfeito, mas não havia nenhum sentimento genuíno entre eles”, disse ele. “Foi então que apareceu o desafortunado britânico, por quem ela se apaixonou.”

Gus e Heywood se desentederam nos meses anteriores à morte de Heywood. Têm sido invocadas razões pessoais e comerciais. Gu teria exigido que Heywood se divorciasse, sem sucesso. Fora isso, os sócios teriam brigado em torno do valor da fatia de cada um num negócio. É certo que romperam a sociedade. A hipótese mais provável é que a ruptura tenha se dado também no campo romântico, o que teria levado a mulher abandonada pelo amante ao desespero e, num segundo passo, ao homicídio.

É tanto o mistério em torno do poder na China que, num primeiro instante, a mídia ocidental considerou que houvesse, na verdade, razões políticas por trás da queda de Bo Xilai. Rivais na luta pelo comando da China teriam armado uma história para derrubá-lo. Não seria propriamente uma novidade nos anais da história do comunismo. No começo dos anos 1930, na Rússia, Stálin fabricou fatos segundo os quais adversários seus apareciam como traidores a serviço do imperialismo – e eram executados. Mas, no caso chinês, a verdade parece ser bem mais simples: o ódio sem limites de uma mulher duplamente rejeitada, antes pelo marido, depois pelo amante. A política, aí, é incidental.

Os chineses consomem a história do jeito que podem. Em Hong Kong, as livrarias foram inundadas por títulos sobre o escândalo. São precários:  foram escritos e lançados a jato. Mas isso não detém os leitores.  “Não sei se o que está escrito aí é verdade”, disse uma chinesa que comprou numa livraria de Hong Kong dois títulos sobre o episódio. “Mesmo assim, estou louca para ler.” Os compradores são, na maioria, de outras partes da China. (Hong Kong, que ficou sob jurisdição britânica por mais de 100 anos por conta de uma guerra em que os ingleses conquistaram o direito de comerciar ópio na China, é mais liberal que o resto do país. Por isso livros delicados como os que tratam da morte de Heywood são encontrados lá, e não em Beijing, por exemplo.)

“Nunca vi um homem que se interessasse mais pela virtude do que pelo sexo”, escreveu Confúcio, o grande filósofo chinês, há 2 500 anos. Hoje, com as formidáveis conquistas femininas em todos os campos na busca da igualdade com os homens, ele poderia acrescentar, sem grandes dúvidas: “E nem mulher.” Bo, Gu e Heywood parecem se encaixar perfeitamente na máxima confuciana. Um dia o acaso os colocou juntos, e o sexo triunfou sobre a virtude. Para os moralistas, o desfecho é perfeito: um está morto fisicamente. Outro, politicamente. E ela vai ter sorte se juízes condescendentes decidirem apenas pela prisão perpétua.