Silêncio sobre crimes de corrupção e estupro: conheça o novo “embaixador” da Santa Sé no Brasil

Atualizado em 14 de janeiro de 2021 às 18:49
Bolsonaro recebeu Dom Giambattista Diquattro em 7 de janeiro, no Palácio do Planalto – Foto: Palácio do Planalto

Publicado originalmente no site Brasil de Fato

POR DANIEL GIOVANAZ E IGOR CARVALHO

Dom Giambattista Diquattro foi recebido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em Brasília, no último dia 7 de janeiro. O religioso é o novo núncio apostólico do Brasil, o representante diplomático permanente da Santa Sé no país, e substituirá Dom Giovanni D’Aniello, que deixa o cargo após oito anos.

Aos 66 anos, Diquattro, que é italiano de Bolonha, chega de uma conturbada passagem pela Índia e Nepal, onde também ocupou o cargo de diplomata da Santa Sé entre janeiro de 2017 até agosto de 2020, quando o Papa Francisco anunciou sua mudança para o Brasil.

Nos bastidores da Igreja Católica no país, o desembarque de Diquattro em Brasília foi comemorado pela ala mais à direita da igreja católica no Brasil e vista com cautela pelos progressistas.

“Ele é muito conservador e terá alinhamento com o governo brasileiro. Ao mesmo tempo, estará distante dos rumos tomados pela CNBB em nosso país”, afirmou um bispo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que pediu para não ser identificado.

O núncio apostólico cumpre uma agenda similar ao embaixador de outros países, estreitando as relações do Vaticano com chefes de Estado. O cargo também influencia na escolha dos bispos do país.

Antes de Brasil, Índia e Nepal, Diquattri era o núncio apostólico na Bolívia, onde ficou de 2008 até 2017. Antes, de 2005 até 2008, foi o representante do Vaticano no Panamá, onde foi nomeado pelo Papa João Paulo II.

“Despachado” da Índia

O núncio da Índia e Nepal fica responsável pelas relações diplomáticas do Vaticano com os dois países. Na Ásia, Diquattro saiu após críticas severas de católicos. O portal Church Citizen’s Voice (em português, “Vós dos Cidadãos da Igreja”) afirmou que o representante da Santa Sé não foi transferido, mas “despachado” do país.

“O núncio vinha sendo atacado por vários grupos da comunidade católica, que o acusam de inação e proteção a bispos corruptos”, diz o artigo. Um dos grupos citados foi a Associação de Católicos Preocupados, que chegou a escrever uma carta ao núncio pedindo sua saída imediata, reconhecendo que “falhou em cumprir seus deveres.”

A carta, assinada pelo então secretário-geral da organização, Melwyn Fernandes, citava rumores de que o núncio teria coletado “enormes quantias de dinheiro de bispos criminosos” como suborno, além de questionar sua hesitação diante de casos de violência sexual e corrupção entre bispos.

“É do interesse dos católicos da Índia que você renuncie, uma vez que não reconhece nenhuma das informações que recebe sobre bispos criminosos, mais ainda à luz de rumores de corrupção de sua parte. Você é de pouca ou nenhuma utilidade para o católico comunidade da Índia e como diplomata, falhou em sua tarefa”, diz a mensagem.

O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, é representante da extrema direita, como Bolsonaro. Enquanto esteve no país, o núncio não fez nenhum comentário ou repreensão ao governante, conhecido por incitar a violência religiosa no país e perseguição a minorias religiosas, como católicos e, principalmente, muçulmanos.

Pressão contra Diquattro 

Dois meses antes de Diquattro ser transferido ao Brasil, grupos católicos enviaram pelo menos 20 cartas ao papa Francisco, à Conferência Indiana de Bispos (CBCI) e ao próprio núncio exigindo sua saída.

Na despedida do núncio, nem a CBCI nem Diquattro se referiram a essas pressões, buscando transmitir que elas não tinham relação com a transferência ao Brasil. O presidente da CBCI, arcebispo Filipe Neri Ferrão, agradeceu os “excelentes serviços” do representante do Vaticano, que retribuiu agradecendo os “proveitosos momentos de diálogo, discernimento e comunhão com os bispos da Índia.”

Coordenador do Fórum Católico Indiano e ex-presidente da União Católica Indiana, Chhotebhai concedeu entrevista ao portal National Catholic Reporter (em português, “Jornal Católico Nacional”) celebrando a saída de Diquattro.

“Eu vi a transferência do núncio como uma pequena vitória moral, uma sensação de alívio”, disse, ressaltando que o mandato do religioso, de 21 de janeiro de 2017 a 29 de agosto de 2020, foi o pior da história da Índia.

Antes de passar por Índia e Nepal, Diquattro foi representante do Vaticano por nove anos na Bolívia, nomeado por Joseph Ratzinger, o Bento XVI. As razões de sua transferência para a Ásia, em 2017, não foram divulgadas.

O Brasil de Fato conversou com Chhotebhai, que afirma não conhecer o histórico do núncio em terras bolivianas. Ele acrescenta que não havia envolvimento político aparente do religioso com o primeiro-ministro indiano.

“Ele não era envolvido politicamente com o governo atual e não há nenhuma informação pública de que ele fosse próximo a qualquer político, como parece estar tendo com Bolsonaro, lamentavelmente”, ressalta. “Mesmo aqui na Índia, sabemos como é o comportamento dele [Bolsonaro], como lida nas pessoas, e não só na pandemia, infelizmente.”

Silêncio diante de estupros

As cartas que exigiam a renúncia de Diquattro na Índia e no Nepal se referem, basicamente, a quatro escândalos de grande repercussão ocorridos em território indiano durante seu mandato.

O primeiro diz respeito ao então bispo Gallela Prasad, no estado de Andhra Pradesh, no sul da Índia. Prasad foi acusado de desviar fundos da diocese para levar uma vida de luxo com uma esposa e um filho.

segundo caso, que teve ainda mais repercussão, foi o do bispo Franco Mulakkal, no estado de Punjab, fronteira com o Paquistão. Mulakkal foi acusado de estuprar uma freira várias vezes. Outros dois escândalos envolviam bispos em Karnataka, sul da Índia, e Jalandhar, acusados de corrupção.

Diquattro foi pressionado pelas comunidades católicas a assumir uma postura firme sobre as quatro acusações, exigindo apurações rigorosas. Sobre o caso Mulakkal, especificamente, o núncio foi chamado a proteger a sobrevivente de estupro e outras cinco colegas, também freiras, que saíram em defesa dela. Até hoje, o representante do Vaticano não se posicionou nem respondeu às cartas.

Melwyn Fernandes, em entrevista ao National Catholic Reporter, chegou a dizer que Diquattro se comportava como “um senhor colonial branco, inacessível a seus súditos, enquanto os escândalos envolvendo bispos destroem a credibilidade da igreja na Índia”.

Chhotebhai, ouvido na mesma matéria, afirmou que o “silêncio [de Diquattro sobre o caso Mulakkal] significa consentimento, portanto conluio e conspiração, o que é um crime segundo o Código Penal Indiano.”

Sobre este caso, as organizações Fórum dos Religiosos pela Justiça e Paz e Irmãs em Solidariedade, associação de mulheres católicas, também tentaram acionar o núncio várias vezes, sem resposta.

Dom Giambattista Diquattro não foi localizado para comentar as acusações.