“O modo como Bolsonaro falou de Bruno e Dom é repugnante”, diz ao DCM ambientalista francês

Atualizado em 21 de junho de 2022 às 10:31
Gert-Peter Bruch e o cacique Ninawa em Grenoble, na França

“Sinto um certo nojo pela reação do presidente Bolsonaro. Um certo nojo porque infelizmente ele não sabe se posicionar dignamente em circunstâncias que merecem uma certa reserva”. O ambientalista francês Gert-Peter Bruch não poupa palavras ao descrever o que sentiu diante do tratamento do chefe de Estado brasileiro a Bruno Pereira e Dom Phillips.

“O modo depreciativo como ele falou dessas pessoas que haviam desaparecido é repugnante”, diz o ativista em entrevista ao DCM.

Para o diretor da ONG Planète Amazone, o comportamento do presidente brasileiro, que disse que Bruno e Dom se lançaram numa “aventura” num “lugar perigoso”, revela inadequação para conduzir o país. “Não é honrar o Brasil ter um presidente que se comporta dessa maneira.”

O ativista fala aos brasileiros reticentes ao seu militantismo: “Não é o agrobusiness que vai trazer a curto ou médio prazo a riqueza ou o desenvolvimento que o Brasil procura.”

“O esgotamento dos recursos e das riquezas vai levar à ruína do Brasil.”

Gert-Peter Bruch vai acompanhar o Cacique Raoni em sua próxima turnê europeia, na qual eles se reunirão com o presidente francês. “Emmanuel Macron apoia o Cacique Raoni e o convidou”. Uma das pautas da reunião deve ser o apoio ao reconhecimento internacional do crime de ecocídio.

DCM: Você dirige a ONG Planète Amazone. Qual é sua história com a Amazônia?

Gert-Peter Bruch: Minha história com a Amazônia começa na infância. Na escola, aprendíamos mais sobre os indígenas do norte. Poucas informações circulavam na mídia sobre os indígenas da Amazônia.

Eu tive a sorte de encontrar Sting quando eu tinha 17 anos. Eu sabia que ele havia acabado de se engajar para apoiar indígenas da Amazônia através de seu apoio a indígenas da Amazônia. Eu tive vontade de encontrar o cacique Raoni quando eu soube que Sting estava preparando uma turnê mundial que ia começar pela França. Eu vi isso como um sinal e decidi me engajar nessa causa.

Eu me engajei a partir de 1989 pela causa amazônica. Depois, eu participei de muitas viagens do Cacique Raoni na Europa.

Você acompanha diversos caciques na Europa. Qual a sua reação aos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips?

Uma reação horrorizada. Uma reação de grande tristeza. Uma reação de reviver uma coisas muito antigas, que pensávamos pertencer a outra época. Penso no assassinato de Chico Mendes, que também foi um choque para nós, não apenas na Europa mas no mundo inteiro.

A morte desses dois companheiros é de uma brutalidade assustadora, pois conhecemos os detalhes macabros de suas execuções, além da maneira como seus corpos foram tratados. Ela denota algo que já sabíamos, mas o mundo inteiro esquece. Os povos indígenas e ambientalistas alertam há muito tempo sobre o agravamento da situação na Amazônia.

Vemos que há uma impunidade total na Amazônia e isso também corresponde ao agravamento da situação. Há uma confirmação de que a segurança, não apenas em relação aos povos indígenas, se degradou fortemente.

Entre nós, ambientalistas, dizemos que acordar menos orçamento aos órgãos que protegem a Amazônia, o meio ambiente no Brasil, não é positivo. Agora temos uma prova disso.

Sinto um certo nojo pela reação do presidente Bolsonaro. Um certo nojo porque infelizmente ele não sabe se posicionar dignamente em circunstâncias que merecem uma certa reserva. O modo depreciativo como ele falou dessas pessoas que haviam desaparecido é repugnante. É de uma repugnância profunda.

Eu não sou inglês, sou francês, mas me coloco no lugar das famílias das vítimas. Não é honrar o Brasil ter um presidente que se comporta dessa maneira, mais uma vez infelizmente.

Você lançou um documentário sobre a Amazônia, inclusive na presença de lideranças indígenas, e está, portanto, em contato com a sociedade civil francesa. Qual a percepção dela e da sociedade europeia em torno do que ocorre na Amazônia brasileira?

Penso que a sociedade francesa é bastante alertada do que acontece na Amazônia justamente depois da viagem realizada pelo cacique Raoni em 1989 e todas as viagens que ele fez. Ele preparou o terreno e agora há cada vez mais delegações indígenas que viajam pela Europa e uma grande cobertura midiática.

Recentemente o Cacique Kretã Kaingang esteve com uma delegação da APIB (Articulação de Povos Indígenas do Brasil) em Bruxelas. Muitos veículos de imprensa foram até lá.

Não falo da grande mídia, pois temos mais ou menos o mesmo problema que no Brasil. Os veículos muito grandes não falam geralmente dessas causas e isso é um pouco semelhante em nosso país.

A imprensa escrita, por exemplo o jornal Le Monde, escreve muitos artigos sobre os indígenas e a situação no Brasil. O povo francês está bem informado do que está acontecendo. E eu diria que acompanha de perto.

Há pessoas que, quando organizamos eventos, vêm nos assistir a cada ano. São frequentemente os mesmos. Há um verdadeiro interesse. Há muito respeito pelos povos indígenas e é isso que tento explicar aos brasileiros, pois uma certa parcela daqueles que estão no país veem com maus olhos os indígenas que estão fora do país para falar de seus problemas.

Na verdade, se eles o fazem é porque não são suficientemente escutados no Brasil. Se eles o fazem é porque são escutados aqui. Talvez não da parte de políticos ou da grande mídia, mas são ouvidos. Têm pessoas que os apoiam, há organizações que ajudam a amplificar sua voz.

O povo francês está consciente da degradação da Amazônia, em particular desde a chegada de Jair Bolsonaro.

O que você diria aos brasileiros que dizem que a voz de ativistas ambientais, principalmente europeus, não é legítima para fazer reivindicações em relação à Amazônia e seus povos?

Eu lhes diria que eles deveriam se informar um pouco melhor. Lamento lembrar-lhes, mas a proteção da Amazônia é uma história comum.

Não devem se contentar em dizer besteiras como “todos aqueles no exterior que se interessam pela Amazônia vêm para invadir a Amazônia e pilhar suas riquezas” ou fazer ingerência.

É preciso olhar os livros de história e se informar. Meu filme explica, por exemplo, no final dos anos 1980, quando houve a Constituinte feita no Brasil, o artigo 231 da Constituição validou que os povos indígenas tinham direito à terra.

A turnê de Raoni de 1989 começa por um encontro com Sarney. Na época, Sarney recebe Raoni e Sting. Raoni diz “eu quero demarcar minhas terras” e Sarney diz que não tem dinheiro. Sting diz que vai fazer uma turnê para coletar dinheiro e que precisa de seu acordo. O presidente diz “sim”.

Já é o início de uma cooperação internacional. Em seguida, em 1992 é lançado um programa de cooperação internacional chamado PPG7, um programa que vai durar 15 anos. Fundos do mundo inteiro serão investidos. Vai da Europa ao Japão, passando pelos Estados Unidos para proteger a Amazônia. Eu poderia citar o Fundo Amazônia.

É uma história comum há mais de 30 anos. Que não falem de ingerência. Eu diria que é um direito de inventário. Quando digo que sou ativista pela Amazônia há mais de 30 anos, sei quais promessas foram feitas, quais investimentos foram feitos, enquanto ativista, cidadão do mundo, espero que os brasileiros compreendam, eu tenho direito de dizer a minha opinião.

Eu tenho direito de expressar minha preocupação e quero tranquilizar todos os brasileiros: eu não tenho nenhuma intenção de mudar para a Amazônia para pegar seus recursos naturais. Pelo contrário, meu trabalho busca preservar, valorizar, inclusive num diálogo com os brasileiros, tentar convencê-los.

A maior riqueza, e há várias, é ter uma Amazônia, ter um Cerrado, ter um Pantanal intactos, com uma biodiversidade de valor inestimável para a humanidade inteira.

Não é o agrobusiness que vai trazer a curto ou médio prazo a riqueza ou o desenvolvimento que o Brasil procura. Pelo contrário. O esgotamento dos recursos e das riquezas vai levar à ruína do Brasil a médio e longo termo.

Não somos inimigos do Brasil. O diálogo que tentamos conduzir há mais de 30 anos, infelizmente por causa de políticos mal-intencionados, do agribusiness e da mídia brasileira, e até da mídia europeia, ainda é um diálogo de surdos.

Tenho certeza de que, com as informações corretas, os brasileiros poderão ficar tranquilos em relação às pessoas que vão à Amazônia trabalhar com os povos indígenas.

Gostaríamos de trabalhar com mais brasileiros da sociedade civil. Mas é preciso primeiro que eles compreendam quais são nossas intenções e que aceitem dialogar.

Você vai acompanhar o Cacique Raoni na sua próxima turnê europeia. Quem vocês encontrarão e o que dirão depois desses assassinatos?

Ainda é um pouco cedo para lhe dar o conteúdo do programa. A turnê ocorrerá no final de setembro. Vamos encontrar as autoridades que aceitarem as demandas que foram feitas. Eu sei que o presidente Emmanuel Macron apoia o Cacique Raoni e o convidou.

Evidentemente o Cacique Raoni aceitou esse convite e vai priorizá-lo. Em comum acordo, uma das questões que aceitamos – o Chefe Raoni e os caciques de sua comunidade e nós da Planète Amazone, que organizamos este evento com o apoio da Princesa Esmeralda da Bélgica.

Há um ano e meio, nós e a Princesa Esmeralda conduzimos diversas ações para lembrar o mundo inteiro a importância da demarcação de terras indígenas. Não é um processo que acabou, é um processo no qual se investiu muito dinheiro e é um processo que garante um mínimo de proteção, um mínimo indispensável. Esse mínimo está ameaçado.

Não se deve dizer que tudo é (responsabilidade de) Bolsonaro. Ele agrava a situação, mas na realidade as políticas do meu país e do meu continente e também nos Estados Unidos contradizem às vezes todos os investimentos que foram feitos para proteger a Amazônia.

Quando há um acordo de livre-comércio, por exemplo entre a União Europeia e o Mercosul, que está prestes a ser assinado e ameaça ainda mais a integridade territorial indígena, pode-se dizer que há um problema.

Esse é o nosso trabalho com essa turnê: colocar a demarcação de terras no centro do jogo. Encontramos inclusive o ex-presidente Lula, agora novamente candidato, que afirma que vai fazer das demarcações uma prioridade se ele for novamente eleito.

Nós devemos nos mobilizar no exterior do Brasil não para pressionar o Brasil mas para que as políticas exteriores estejam em coerência com o Acordo de Paris para o clima e todos os investimentos feitos para proteger os povos indígenas e o meio ambiente no Brasil.

O Cacique Raoni tomou posição em 2013 de apoio a um projeto que visa a reconhecer o crime de ecocídio. Para mim, o crime de ecocídio está ligado ao que acontece atualmente na Amazônia, o massacre de Dom Phillips e Bruno Araújo.

O problema da insegurança nos territórios indígenas mostra que há um problema de primeira ordem. Vocês têm hoje algo que entra em confronto com a legislação no Brasil. As terras indígenas pertencem a algo extremamente regulamentado no Brasil. No entanto, essas terras indígenas foram cada vez mais invadidas no mandato de Jair Bolsonaro.

Nas terras yanomamis, estima-se que mais de 20 mil garimpeiros estão ilegalmente em seu território. Há casos de estupros, ataques, assassinatos. Hoje não se pode enfrentar esses crimes. As pessoas que entram nesse território para destruir o ecossistema podem fazê-lo de modo impune, violando a Constituição e toda norma internacional.

Se uma multinacional tiver a permissão do governo federal brasileiro e destruir ecossistemas… Foi o caso da usina de Belo Monte. Mas teve muitos processos que foram derrubados um após o outro por um mecanismo jurídico chamado “suspensão de segurança”.

Ecossistemas foram destruídos por lá, no Xingu, em total impunidade. Vão argumentar que certas espécies foram transportadas para laboratórios ou colocadas em zoológicos.

O crime de ecocídio é uma maneira de poder punir, portanto de desencorajar, penalizando decisões que levam à destruição de ecossistemas. Isso não existe hoje. É um combate que o Cacique Raoni defende há muito tempo, que avança internacionalmente.

Cada vez mais países começam a tomar posição. A Bélgica começa a ser pioneira nesse campo. Queremos apoiar nessa campanha a ideia da necessidade de uma legislação que reconheça o mais rápido possível o crime de ecocídio.

No Tribunal Penal Internacional (TPI), por exemplo?

No Tribunal Penal Internacional, por exemplo, reconhecendo-o como um crime contra a paz. Houve diversas denúncias ao Tribunal Penal Internacional contra Jair Bolsonaro. Uma delas, em 2021, foi enviada pelo Cacique Raoni. Foi feita uma menção de crime de ecocídio, porque quer-se fazer o TPI avançar e nós queremos que ela possa julgar o crime de ecocídio.

O TPI, por exemplo no caso do agente laranja no Vietnã, poderia apenas considerar crimes ambientais que ocorrem em caso de crime de guerra. Mas nesse caso, eu estimo que as pessoas que cometem crimes contra o meio ambiente fazem guerra contra a humanidade inteira, pois a coloca em perigo.

São conceitos novos. Não temos muito tempo. Um conceito jurídico geralmente leva 50 anos para entrar em vigor. Não temos 50 anos. Queremos acelerar o processo.