Sobre a traição

Atualizado em 21 de novembro de 2012 às 20:50
De Niro, em "Era uma vez na América"

 

VOCÊS ACHAM QUE tem solução este casamento?

Os fatos: a mulher, de quase 60 anos, três filhos, fica chocada com a doença que está matando um amigo. Antes de morrer, ele pede a ela que olhe por seu filho único, de 19 anos. Ela promete que sim. Morto o doente, ela se aproxima, maternal, do garoto 40 anos mais novo. Mas logo o sentimento maternal vai sendo substituído por lascívia, por instintos básicos, e os dois se tornam amantes na clandestinidade. Ela pede a empresários conhecidos que financiem um projeto do jovem namorado, um café. Consegue, e o café é aberto. O caso não dura muito. Ela pede o dinheiro de volta e nada. Desesperada, tenta se matar e nada. O marido finalmente sabe de toda a história. Diz que perdoa a mulher e que ambos vão se empenhar em resgatar o casamento.

É uma história real em que o fato central é a traição.

Vou dizer o que acho sobre o tema da traição, quer de uma mulher ou de um amigo. Lembro uma frase que li num romance de John Le Carré, um dos meus escritores favoritos, um mestre das tramas de espionagem. Um personagem diz a seguinte frase: “Mulher que me estapeou não teve uma segunda chance.”

É isso, folks.

Para mim, a pessoa que trai não tem uma segunda chance de trair.  Uma ponte foi explodida e jamais pode ser reconstruída como era antes, quer seja no amor, quer seja na amizade. Já traí uma mulher e fui supostamente perdoado, mas era uma anistia só na embalagem, como o tempo rapidamente mostraria. Já fui também traído por uma mulher, e logo vi que também minha anistia era fajuta. Era a parábola de Le Carré: não havia, verdadeiramente, uma segunda chance. Conheço gente que tentou, e foi um tormento.  A lembrança acorre, a cicatriz se reabre imprevistamente, o sangue jorra sobre a paz e a felicidade. Aprendi, traindo e sendo traído no amor, que você tem que pensar muito bem antes de dar o passo a partir do qual não há volta.  O marido do caso que contei está dizendo que perdoou a mulher. Sinceramente: não acredito. Quero ver no quarto do casal, na hora de dormir, o que eles vão conversar. Num caso clássico, Hillary Clinton perdoou, entre aspas, o marido Bill, segundo é amplamente acreditado nos Estados Unidos, em troca do apoio a sua candidatura presidencial, afinal frustrada por Barack Obama. Um perdão de mentirinha.

Na amizade é o mesmo. Montaigne escreveu que dois amigos são como um tecido tão bem cosido que você não nota a costura. A traição despedaça este tecido tão sublimemente descrito por Montaigne, que mesmo com uma alma quase invencível pela filosofia estóica que praticava ficou simplesmente aniquilado pela morte de seu maior amigo, La Boetie. São comoventes as palavras de Montaigne, em seus Ensaios, sobre seu amigo morto.

Há uma cena em Era Uma Vez na América, de Sergio Leone, em que dois caras que tinham sido os melhores amigos na infância e juventude se reencontram, já maduros. Um está rico, o outro pobre. O amigo rico se encheu de dinheiro por ter traído o outro. Todo o dinheiro que ele tem não lhe traz paz, no entanto. Ao olhar o amigo traído, ele tenta alguma reconexão.  “Lembra …” Impassível, o amigo traído diz: “Uma vez conheci alguém e gostava muito dele. Mas esse alguém morreu.” E vai embora, sob a música acachapante de Enio Morricone.

O amigo que trai, como a mulher que dá um tabefe na reflexão de Le Carré, não tem, para mim, uma segunda chance de trair. Você pode vê-lo por acaso na rua, como no filme de Leone, mas ele é apenas um fantasma, a imagem evanescente e desfocada de alguém em quem certo dia você confiou.