Sobre o atual fenômeno “espiritismo de direita”. Por Rogério Mattos

Atualizado em 12 de dezembro de 2018 às 10:42
Robson Pinheiro, o médium que resolveu dar “conteúdo espiritual” a capas da Veja. Foto: Reprodução

Publicado originalmente em OAbertinho

POR ROGÉRIO MATTOS, professor e tradutor da revista Executive Intelligence Review

O espiritismo no Brasil dá sinais nítidos de decadência. O caso do médium acusado de violência sexual já é a cópia da cópia de um processo bem mais amplo. Para determinados assuntos chegarem ao noticiário, contudo, na maioria das vezes se recorre a expedientes grosseiros. Assim, o público acaba recebendo uma ideia bastante reduzida e distorcida sobre inúmeros assuntos.

Como a Lava-Jato cansou de demonstrar, a questão criminal não nos leva para muito longe. Também por isso ela foi um sucesso de bilheteria. Igualmente, já chegou à estafa as acusações ao conservadorismo de Divaldo Franco, com seus louvores despudorados a Sérgio Moro, as alegres fotografias ao lado de João Dória e seu último vaticínio espiritual, talvez seguindo “planos maiores”, de que a capital do Brasil agora é Curitiba.

Falo do médium Robson Pinheiro para ilustrar o caso mais amplo do “espiritismo de direita” por ter sido um leitor entusiasmado de seus primeiros livros. Conheço relativamente de perto determinados aspectos de seu desenvolvimento como escritor, por ter acompanhado parte considerável de sua produção.

Gostava daquele negócio de Tambores de Angola (e quantos não?), a chamada “trilogia das sombras”, e até quando trouxe ao debate público, sob o tema da “reurbanização extrafísica”, o pesquisador do Azerbaijão, Zecharia Sitchin. Pouco importa se o médium, na ocasião, fazia referências a armas climáticas (HAARPs), ao Clube Bildberg, a “larvas astrais”, agêneres, exus ou filosofia védica. Escândalo frente a qualquer tipo de teoria é um excesso dos “bens pensantes” que, afinal, se não vêem nada de novo, tampouco tem a capacidade de rir às gargalhadas. Nessa “loucura” de Robson Pinheiro, existia uma razão muito séria.

No mais, frente a qualquer catástrofe ou ao escândalo, frente a abril de 1964 ou a maio de 1968, o trabalho deve continuar sendo feito quase como se nada houvesse ocorrido e com a mesma gana se tivéssemos a instantes da mais consagradora vitória, aquela que por nada devemos deixar escapar.

Depois de lançada a “trilogia das sombras” (talvez seu livro mais “especulativo”), houve uma demanda por parte de almas mais sensíveis para que fosse escrito algo a respeito do “mundo da luz”. O médium se pôs de prontidão e escreveu nova trilogia, a das luzes.

Mas que estranhas luzes apareceram ali! Parecia uma propaganda de governo Lula entregue a um imigrante azerbaijanês recém-chegado. A consciência era mínima a respeito do que estava sendo descrito. Um Brasil mulato, com imensas universidades, uma multidão de estudantes, e firmemente comprometido com o futuro. Ao lado disso, a inconsciência com o processo social e histórico mais amplo, como se a metáfora dissesse respeito ao “mundo espiritual”, a Aruanda, e não a história concreta.

A trilogia perdeu assim em dois aspectos: o primeiro, a confusão entre o empírico e o transcendental (problema de estilo); o segundo, pela ausência de ruptura entre um aspecto e outro da realidade, não se chegou nem a descrever nem o “empírico” ou o “transcendental” (não servia nem para fins políticos, tampouco para revelações do além). Livros, portanto, que não trouxeram novidade alguma.

Foi quando o médium começou, talvez, a se tornar fácil demais, vendável demais…

O que colocou fim para mim a qualquer novidade que seus livros poderiam trazer foi sua publicação a respeito da homossexualidade. Tema tabu no meio espírita, Robson Pinheiro foi extremamente corajoso e arcou com todos os ônus trazidos por suas palavras. Livro corajoso pelo tema e corajoso pela forma. Ainda existia o apreço pela inovação formal, como no antigo livro Crepúsculo dos deuses, de acentuado teor nietzschiano, escrito sob o pseudônimo de um hindu falecido há mais de mil anos. Vendo retrospectivamente, fica mais claro o tamanho da inconsciência do médium, porque sem dúvida se abria ali um horizonte de trabalho bastante interessante e que não foi explorado posteriormente.

Coloco esse livro, O próximo minuto, como ponto de ruptura ao lado da “trilogia das luzes”. Um ato de coragem ao lado de uma consciência crítica não muito desenvolvida. Parece que nessa fotografia se cristalizou as capacidades do médiuns. O próximo passo foi uma dupla fuga do real. Quer dizer, pouco importa o que bens pensantes consideram “o real”. Houve uma fuga no estilo esquizofrênico ao combate da verdade. Apareceram discos voadores e se materializaram capas da Veja em seus livros.

Os parcos recursos estilísticos não deram conta de descrever, por exemplo, o “buracos de minhoca” do universo, determinados portais de comunicação entre mundos distantes. Ao lado de parcelas de verdade, o veio poético talvez devesse falar mais alto do que revelações extrafísicas ou prováveis confirmações da ciência moderna. Conforme o conteúdo de verdade parecia se acumular, a prosa se tornava cada vez mais rala…

Até que surgiu a surpresa da “trilogia política”. São sugestivos os nomes dos livros: O partidoA QuadrilhaO Golpe. Nesse momento já me encontrava a relativa distância das publicações da Casa dos Espíritos Editora. Um muro então se ergueu. Como os seus livros aprofundavam a tendência de capas espetaculosas, letras grandes, espaçamento gigante, cada vez ficava mais fácil perceber que pareciam mais artigos diligentemente alongadas por ferramentas editoriais do que estudos sérios e extensos. Em relação aos três livros, o que me impediu até uma leitura crítica foi a publicação da carta de Tancredo Neves (veja bem o sobrenome), de conteúdo duvidoso e tornada pública em meio ao conturbado processo eleitoral de 2014.

O que não me impediu de folhear alguns deles nas livrarias. Numa leitura rápida, se vê que Lula é uma reencarnação de Lênin e Dilma a de Rosa Luxemburgo. Isso seria muito bom (pelo menos é o que penso), mas vinha enquadrado nas teorias conspiranóicas sobre o Fórum de São Paulo e considerações bastante retrógradas a respeito da multiplicação de direitos sociais. Existiria uma dicotomia, por exemplo, entre Cuba e Curitiba…

Num grupo do Facebook vi uma descrição interessante sobre um dos livros de alguém que conseguiu se ocupar com isso: “O Partido no caso fica claro q é o PT e seu plano de dominação. Coloca claramente o PT com seus agentes espirituais do mal agindo nas sombras, influências e tudo o mais. Coloca Lula como um “cachaceiro das sombras” , recebendo ordens diretas das entidades infernais… Nesse lenga lenga, aparecem naves, obsessões complexas, gadgets espirituais, preto velhos, flash gordons genéricos etc… Uma mistura de umbanda com x-men”.

Não dá vontade de falar mais nada depois disso, porém existe dois comentários mais gerais que não posso deixar de fazer. Se existe algo que diferencia o espiritismo no Brasil e o movimento francês do século XIX é seu nítido conteúdo social. Allan Kardec dizia fazer ciência e tinha interlocutores da alta sociedade europeia. Era um fenômeno eminentemente iluminista. Já Chico Xavier é aquela figura romântica, que psicografava ouvindo Roberto Carlos, e tinha mais como objetivo consolar mães e desalentados do que falar para interlocutores privilegiados.

O espiritismo no Brasil me faz lembrar palavras de Gilles Deleuze sobre o cinema no Terceiro Mundo: ele serviria para criar uma memória para o mundo. O cinema europeu nunca faria isso, já que suas reivindicações de identidade são as do cidadão branco médio, de cultura conservadora e horizontes previsíveis. Se existe uma memória do mundo ela não está nos chamados países desenvolvidos. Igualmente, no Brasil qualquer movimento da cultura (o espiritismo não é nada mais do que isso) tem que estar atrelado às questões sociais do país e todo o chamado “pensamento crítico brasileiro”, de Capistrano de Abreu e Manoel Bomfim até Ruy Mauro Maurini e Haroldo de Campos, só tem validade caso sirva para ser essa denúncia e esse pensamento sobre si que cria uma memória para o mundo.

Nesse sentido, como é exemplificado na “trilogia das luzes” ou (inconscientemente) “lulista” de Robson Pinheiro, fora qualquer consideração a respeito de sua capacidade pessoal ou intelectual (que demonstrou ter dentro de determinados parâmetros), infelizmente ele não se mostrou a altura daquela imensa universidade que talvez tenha visto em sonhos. Era o povo mais pobre tendo acesso não só a possibilidade de desenvolver de forma mais ampla seu pensamento crítico, como também se capacitando para exercer novas profissões, algo inadiável com a plataforma para o futuro que se abria com os governos do PT.

De certa forma, o médium se mostra como a parte perdedora desse imenso retrocesso social que vivemos. De origem pobre, é vítima das carências que sem sucesso procurou identificar em livros mais antigos, sem ter sido suficientemente beneficiado dos valores que timidamente reconheceu. Ele é mais um retrato do que um agente da moral de escravos que assaltou o poder.

Como diz a moral nietzschiana, os chamados senhores são escravos por serem reféns do ressentimento e da má-consciência. Os senhores, os homens livres, são a minoria. A luta das minorias é a luta pelos valores verdadeiramente nobres ou “aristocráticos”, se é que esses podem ser denominados assim. A chamada “maioria”, imbuída do espírito de negação (o éthos do século XIX, sua sofisticação, “preferir desejar o nada do que nada desejar”), age de modo vingativo e destruidor, ou seja, procura entorpecer a dor, suas frustrações pessoais, através de uma forte descarga de afeto. Como as manchetes grotescas dos jornais, tudo isso é extremamente contagioso.

O caso Robson Pinheiro é como o daquele cidadão desavisado num ponto de ônibus que vê uma vã passar em baixa velocidade, com as portas abertas, e embarca. Mas a vã não tem motorista, está vazia. É de origem e destino altamente duvidosos. Trem fantasma.

O fenômeno “espiritismo de direita” é a normalidade de um Brasil doente, decadente, vítima do mesmo mal do século XIX, o niilismo. Atualmente, por causa do desenvolvimento tecnológico, chega a adquirir características apocalípticas frente a uma realidade cada vez mais complexa, oxalá mais justa e soberana, que se avizinha.