Sobre o PL das cesáreas: por que odiamos tanto a vagina? Por Simony dos Anjos

Atualizado em 9 de setembro de 2020 às 15:59
Imagem: Carla Raiter/ Projeto 1 em 4

PUBLICADO NO JUSTIFICANDO

POR SIMONY DOS ANJOS

Um dos maiores constrangimentos que os pais passam na criação dos filhos é explicar como os bebês são feitos e por onde eles nascem. Para resolver a primeira questão, inventaram a cegonha e para a segunda, a cesárea [1]. Bom, você deve pensar que estou sendo irônica, mas não. A cesárea é mais um dos contos de fadas inventado pelo lobby médico do parto agendado. Há milhares de anos a espécie humana nasce pela vagina, de parto natural e sem essa medicamentalização extrema do parto, e estamos aqui, não?

Que a medicina desenvolveu maneiras de evitar a morte e estender a vida, é inegável. Que haja a necessidade de fazer um parto por cesárea, eventualmente, não há dúvida. Mas você já frequentou uma maternidade na semana de feriado prolongado? Assim como o relógio dita como a vida deve ser vivida, querem que o calendário dite como ela deve iniciar, de preferência em dia útil das 8h às 18h.

A história do circular de cordão umbilical que estrangula o bebê, que a mulher não tem passagem, que a vagina vai ficar mais larga, que o bebê é muito grande etc., são elementos que trazem legitimidade para provar a necessidade de uma cirurgia que, na maioria das vezes no Brasil, é desnecessária. Adicionamos a isso a infantilização do corpo feminino e a descrença que nossos corpos podem parir e amamentar, e temos uma verdade médica criada. Sim, isso é sobre o controle de corpos femininos. Os partos são um momento único na vida de uma mulher e de seu bebê, e não é tratado como evento único, mas como mais um – muitas mulheres sofrem episiotomias absolutamente desnecessárias, um corte na vagina que pode prejudicar muito a vida sexual dessa mulher, além da autoestima que é fortemente atacada, para acelerar o processo. 

No Brasil, em 2017, 55,5% dos partos foram cesáreas, contra 44,5% de partos normais (levando em consideração SUS e particulares), quase dois milhões de cirurgias desnecessárias. Sim, temos que tratar a cesárea como uma cirurgia que incorre em aumento da taxa de mortalidade materna e infantil – além do impacto no aleitamento materno, pois mães que fizeram cesáreas tendem a ter índices menores de aleitamento.

Você consegue enxergar? Cesárea, no Brasil, não é uma questão de evitar riscos à mãe e ao bebê, é uma questão de uso dos recursos dos hospitais e de disponibilidade de equipe médica.

E por que a cesárea é tão recorrente nas maternidades? Tempo. Um parto normal demorar horas, dias, e demanda um protagonismo do corpo da mulher. A equipe médica deve ser paciente, não se pode agendar vários partos normais para um dia, não se pode agendar o processo natural do corpo da mulher. Várias de nós, quando vão ao seu obstetra pelo convênio, escutam: “Se for normal, vai ter que ser no pronto socorro. Comigo, apenas cesárea”. E se você entrar em trabalho de parto em feriado ou final de semana, a chance de você sofrer uma intervenção no parto é muito maior.

Médicos obstetras planejam partos para que possam, também, atender às consultas e demais compromissos, sem grandes inconvenientes. Para o hospital particular, é lucrativo alugar todo seu equipamento de cirurgia com uso certo, do que apenas para intercorrências. Enfim, há um mercado que lucra com a cesárea, há uma sociedade que quer apagar o protagonismo da mulher e de seu corpo. Uma sociedade que quer esquecer que a origem da vida é a vagina.

Não bastando esse cenário desolador para as mulheres, contra o qual muitas de nós luta (O trabalho da casa Ângela é essencial na humanização e dignidade no atendimento da mãe e do bebê), a deputada Janaína Paschoal propôs o PL 435/2019, cuja ementa é “Garante à gestante a possibilidade de optar pelo parto cesariano, a partir da trigésima nona semana de gestação, bem como a analgesia, mesmo quando escolhido o parto normal.” . No texto, a deputada do PSL diz que: “A fim de que o objetivo deste Projeto de Lei não venha a ser deturpado, frisa-se que esta Parlamentar não tem nada contra o parto normal, não tem nada contra o parto natural, mas tem tudo contra o desejo de impor convicções de umas poucas pessoas às demais. Ousa-se dizer, à maioria.”

Vamos falar sobre imposição, deputada? Durante décadas, médicos vêm controlando nossos corpos, dizendo que não podemos parir sem cortes, alimentar nossos filhos sem leite industrializado. Lucrando sobre a nossa insegurança, causada pelo o que falam sobre nós: seus corpos não são potentes, vocês não podem protagonizar o parto, nós o faremos por vocês. E a senhora vem com essa conversa fiada de que as pessoas que defendem o parto sem intervenções desnecessárias, que promovem uma cultura do parto natural e humanizado, querem impor convicções? A senhora acha que a gente tem mais poder do que janela de vidro de maternidade, com hora marcada com a família e com equipe fotográfica a postos? A senhora acha mesmo que temos mais força do que todo o lobby dos convênios médicos que querem otimizar suas equipes, nos finais de semana?  Acha mesmo?

A senhora diz que não podemos optar pela cesárea num país que ocupa o segundo lugar no mundo em número de cesarianas. Num país que contraria a Organização Mundial da Saúde (OMS), que estabelece em até 15% a proporção recomendada de cesarianas, sendo que no Brasil esse percentual chega a 57%? [2].

Ah faça-me o favor, fale logo quem a senhora representa. Não venha com essas meias verdades dizendo que preza pelo direito de escolha da mulher. Que quer romper com a relação vertical médico-paciente. Se a senhora realmente quisesse isso, mudaria de lado. Agora mesmo, tem uma mulher em um consultório ouvindo de um obstetra que “só faço agendado” ou “vamos tirar logo, ele está muito grande” – quantas doulas podem ter um papo aberto e assertivo com gestantes, nesses mesmos lugares? E por fim, deputada, pare de fazer coro aos que odeiam a vagina. A vagina é capaz de parir um bebê. O parto vaginal fortalece o sistema imunológico do bebê, tem recuperação mais rápida e prepara o corpo da mulher para a descida do leite. Nosso direito de escolha deve ser pautado no pleno conhecimento de nossos corpos, de nossas condições de saúde e dos nossos direitos sexuais e reprodutivos. Se for pela vida e pela escolha, não pode ser pela cesárea.

Simony dos Anjos é cristã, evangélica, graduada em Ciências Sociais (Unifesp), mestre em Educação (USP) e tem estudado a relação entre antropologia, educação e a diversidade.