A arte de usar citações

Atualizado em 21 de novembro de 2012 às 20:50
Papai na Folha nos anos 1970

 

E aqui segue mais um artigo de papai sobre o português cotidiano. Foi publicado em sua coluna na Folha, “A Língua Nossa de Cada Dia”, nos anos 1970. Gosto de várias coisas nele. Do estilo machadiano da prosa, simples e elegante. Da referência a um grande mestre esquecido do jornalismo, José Reis, o primeiro diretor da Folha na administração Frias. Da reflexão sobre o excesso de citações num texto. Mais uma vez, aproveito para agradecer Camila Nogueira, neta de Emir, pelo trabalho de digitação de um artigo do avô que ela, infelizmente, não conheceu.  

 

Há muita gente incapaz de escrever alguma coisa sem recorrer a citações. É claro que em muitos casos elas são perfeitamente cabíveis e até indispensáveis; em outros, nem tanto, não sendo raras as pessoas que fazem citações textuais apenas para mostrar (ou aparentar) erudição.

Quando se cita uma frase, um pensamento, uma máxima na língua nacional, não há maiores problemas, a não ser a obrigação ética, se a transcrição for literal, de apresentá-la entre aspas na linguagem escrita: excluem-se desssa obrigatoriedade apenas as expressões por assim dizer já caídas em domínio público, por muito usadas ou por não se saber quem as criou.

As citações em língua estrangeira trazem alguns problemas. Se alguém, por um motivo qualquer, se sente compelido a recorrer a elas, corre de imediato um risco: não ser entendido pelo seu leitor ou ouvinte. De fato, ninguém é obrigado a saber latim (que continua sendo a língua preferida pelos amantes de citações), nem mesmo inglês ou francês e outras línguas modernas. Para evitar essa risco, há quem faça seguir, a citação estrangeira, da sua tradução em português, geralmente entre parênteses. Mas aí há outro inconveniente. O leitor ou o ouvinte culto pode sentir-se “ofendido”, raciocinando assim: “Então esse camarada não sabe que eu sei latim – ou inglês – ou francês?”

Camila, à beira do Tâmisa: a digitadora dos textos do avô

Suponhamos que, num momento de inspiração (quase sempre de má inspiração), decida uma pessoa intercalar num seu escrito a máxima latina “Amicus Plato, sed magis amica veritas”. Deitou erudição, deixou de queixo caído meia dúzia de pessoas que ficam espantadas com essa “demonstração de cultura”, mas em compensação é provável que a maioria dos que lêem aquilo não entenda patavina. Em atenção a estes, resolve então o autor da citação traduzí-la mais ou menos linearmente (para “Platão é meu amigo, mas a verdade é mais amiga ainda”, ou “Sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade”. Os outros leitores, além daquela incômoda pergunta (“Ele pensa que ue não sei latim?”), podem ainda indagar: “Por que já não fez a citação em português?”.

Com o professor José Reis – mestre em muitas coisas e também em questões de língua – aprendeu este colunista uma espécie de técnica para resolver os problemas das citações em idiomas estrangeiros. Como norma, o ideal é não usá-las, em texto que se destinem a público amplo e não especializado. Quando há versões vernáculas que correspondam precisamente ao que querem dizer frases feitas, sentenças ou aforismas estrangeiros, é preferível usar aquelas a estes. Assim, “gosto não se discute” ou “gosto e cor não se discutem” são melhor do que “de gustibus et coloribus non dispuutandur”, muitas vezes ostentação de cultura barata.

Nas ocasiões, porém, em que não se quer ou não se pode fugir a uma citação estrangeira, as exigências de clareza na expressão do mandamento tornam indispensável complementá-la com uma tradução livre, ou interpretação sucinta, que permita a todos os leitores ou ouvintes entender o que se está dizendo. Tradução literal, nunca.

Voltemos ao “Amicus Plato…” do exemplo dado atrás. É formula que se aplica a situações em que uma pessoa se sente obrigada, por uma questão de honestidade e amor à verdade, a desmentir outra, que no entanto lhe merece toda consideração (Platão entra aí, como Pilatos do Credo, quer dizer, não tem nada com a história). Feita a citação, é sempre útil completá-la com o esclarecimento indireto: “De fato, por maior respeito que nos mereça o sr. Fulano de Tal, não podemos deixar de dizer que há engano naquilo que afirmou” – ou coisas semelhantes, que facilitem ao leitor o entedimento do sentido da citação e das circunstâncias que cercam o fato comentado, sem ferir as susceptibilidades dos mais versados nas obscuridades do latim.