Suspeição de Moro: o que fazer quando se sabe que se sabe? Por Lenio Luiz Streck

Atualizado em 25 de maio de 2020 às 19:42
Sérgio Moro. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Publicado originalmente no ConJur:

Por Lenio Luiz Streck

Não, não é fácil conseguir a declaração de suspeição de um juiz no Brasil. O STF chegou a dizer no HC 95518 — impetrado pelo brilhante Cesar Bitencourt — que, embora comprovado o ato abusivo do magistrado, isso não implicou parcialidade contra o réu. O juiz em questão era, nada mais, nada menos que Sérgio Moro. Isso há alguns anos. O STF disse, por exemplo, que “atua com inequívoco desserviço e desrespeito ao sistema jurisdicional e ao Estado de Direito o juiz que se irroga de autoridade ímpar, absolutista, acima da própria Justiça, conduzindo o processo ao seu livre arbítrio, bradando sua independência funcional”.

Nesse caso em que o STF desenhou o retrato de Moro, esculpindo-o em carrara, embora não tenha poupado adjetivos fortes à conduta abusiva do juiz, não foi declarada a suspeição, uma vez que “o conjunto de atos abusivos, no entanto, ainda que desfavorável ao paciente e devidamente desconstituído pelas instâncias superiores, não implica, necessariamente, parcialidade do magistrado”.

Veja-se. O precedente de então, e que, ao me consta, não foi superado, é o de que apenas não se declara a suspeição por parcialidade quando as decisões decorrentes de condutas desse jaez são corrigidas por instâncias superiores.

Até faz sentido. No entanto, se a conduta abusiva do juiz impregna o conjunto probatório, como se fosse o veneno da tese dos frutos da arvore envenenada, pendo que, desde sempre, o processo deverá ser nulo. De todo modo, dependerá do exame do caso concreto. Como, aliás, deve ser a análise de um precedente. Nenhum precedente se aplica em abstrato ou automaticamente.

Para ser mais claro: no caso do HC impetrado por Bitencourt, o STF apenas remeteu cópias para a corregedoria, porque já estavam corrigidos os erros e as diatribes do juiz Moro. A contrario sensu, pode-se deduzir, então, que, se houvesse qualquer prejuízo ao paciente, a nulidade seria declarada pelo Supremo Tribunal.

Portanto, o fulcro desse precedente foi que “a alegação de suspeição ou impedimento de magistrado pode ser examinada em sede de habeas corpus quando independente de dilação probatória. É possível verificar se o conjunto de decisões tomadas revela atuação parcial do magistrado neste habeas corpus, sem necessidade de produção de provas, o que inviabilizaria o writ.

Temos então que, segundo o STF, é possível ir além do rol taxativo do artigo 254 do CPP (na contramão, recentemente o TRF4 disse que o rol era absolutamente taxativo, com o que nada podia ser feito).

Hermeneuticamente registro que essa tese da taxatividade é, claramente, o resquício da corrente textualista na interpretação brasileira. Por ela, por exemplo, o caso Brown v. Board of Education of Topeka (de 1954) teria sido julgado no sentido da continuidade da separação racial entre crianças (aliás, o ex-textualista Adrian Vermeule, professor de Harvard, diz que, pelo textualismo, a discriminação deveria continuar).

Temos de saber, então, qual é a jurisprudência que vale:

a) a que sustenta que é possível examinar a parcialidade em sede de Habeas Corpus quando há prova pré-constituída (elementos objetivos);

b) a que sustenta que “a arguição de suspeição do juiz é destinada à tutela de uma característica inerente à jurisdição, que é a sua imparcialidade, sem a qual se configura a ofensa ao devido processo legal” (STJ no HC HC 172.819/MG);

c) a que assegura que “(A CF prevê uma) Garantia processual que circunscreve o magistrado a coordenadas objetivas de imparcialidade e possibilita às partes conhecer os motivos que levaram o julgador a decidir neste ou naquele sentido” (STF — HC 110844).

Ou vale a jurisprudência que:

d) se apega a um textualismo ingênuo e ultrapassado (Vermeule I), sustentando que o rol do artigo 254 é taxativo, com o que a parcialidade acaba ficando de fora ou se constituindo quase que em uma “prova diabólica”?

Eis a questão: valem “a”, “b” e “c”, lidos separadamente ou conjuntamente, ou vale a alternativa “d”?

Ora, I) uma coisa é dizer que, no artigo 254, estão elencadas hipóteses de afastamento do juiz; outra coisa é II) dizer que o dispositivo elenca (tod)as hipóteses de afastamento. Veja-se que se trata de uma regra. E onde está o princípio? Ou a imparcialidade não é um princípio? Não encontrei quem dissesse que não. Consequentemente, a resposta deveria ser óbvia.

De saída, o próprio texto de lei tem lá suas idiossincrasias. Como a parcialidade não está elencada, entendem, parte da doutrina e jurisprudência (dominantes?) que, fora das hipóteses (taxativas) do artigo 254, a parte não conseguirá demonstrar a suspeição. Não há algo errado nisso?

Se a tese da taxatividade do rol do artigo 254 for vitoriosa, então sequer poderemos cumprir os ditames do Tribunal Interamericano, que diz que é garantia do acusado ser julgado por um tribunal imparcial. Assim, por aqui, se não enquadrarmos nenhum ato do juiz ou do tribunal naquele rol taxativo, mesmo que o juiz tenha sido parcial até as grimpas, nada acontecerá. Ou minha leitura é equivocada?

Vamos a um exemplo: o juiz pode esculachar o réu, cometer abusos (como o fez o juiz Moro no HC mencionado), mas, se ele não é “inimigo capital”, nem parente, nem cônjuge, sócio etc., não haverá parcialidade. É a tese da taxatividade.

Ora, o fato de uma atitude do juiz não preencher as “taxativas” hipóteses da lei não quer dizer que não tenha sido parcial. Por exemplo, o comportamento de Sergio Moro. Vazou gravações ilegais (chegou a pedir desculpas ao STF pelo seu ato), vazou delação dias antes da eleição (Palocci), trocou figurinhas com a acusação (Intercept). Isto é: elementos objetivos de que agiu com parcialidade não faltam. O que mais precisaria ele fazer? Bater no réu? Esfolar as testemunhas?

Deve haver um modo, jurídico, pelo qual nós possamos dizer que não pode ser assim. O “não pode ser assim” está na origem da própria ideia de Direito. Sir Edward Coke disse ao rei absolutista, no século XVII, que não podia ser daquele jeito.

Nem os notórios instrumentalistas negam que a imparcialidade seja um princípio (este, de fato, preenche todos os requisitos exigidos de um princípio). Consequentemente, o artigo 254 deve ser lido a partir da iluminação deontológica do princípio da imparcialidade, previsto, aliás, nas convenções e tratados assinados pelo Brasil de há muito (por exemplo, Pacto de San José da Costa Rica — 1969, artigo 8º).

Processo é garantia. E não instrumento. Logo, o devido processo legal traz ínsito a exigência de imparcialidade, de fairness (equanimidade).

Por fim, não é demais lembrar o modo como o Tribunal Europeu de Direitos Humanos vê o problema: ele exige não só a imparcialidade; ele exige a aparência de justiça. A tese é: “Justice must not only be done; it must also be seen to be done“.

Observe-se: a Constituição já é a maior demonstração do conceito de imparcialidade. Sabem como? Se a Constituição é um remédio contra maiorias — e o é — isto já quer dizer que cumpri-la é um gesto imparcial, porque a decisão será contra as eríneas (da peça As Eumênidas!), contra as sereias (e seu canto) portadoras do senso comum, pelo qual os fins justificam os meios.

Ou seja, a Constituição do Brasil e o Tribunal Europeu dos DH abominam o modelo “juiz Larsen” (Caso Hauschildt vs. Áustria) — esse juiz (Larsen) pré-julgava e aplicava sua opinião independentemente do caso concreto.

Numa palavra final, lanço, aqui, um slogan sobre o comportamento do juiz Moro. Tiro do livro “A Espera dos Bárbaros”, de Coetzee. O personagem narrador é um juiz.

Bom, então qual é o slogan? Simples: o juiz descobre que havia tortura no forte e fica num dilema: o que fazer agora que sabe?

Eis a pergunta: o que a comunidade jurídica e o STF farão, agora que sabem que sabem tudo sobre Moro?

Como disse o juiz-narrador do romance de Coetzee: “De forma que agora parece que meus anos de sossego estão chegando ao fim, quando eu poderia dormir com o coração tranquilo, sabendo que com um cutucão aqui e um toque ali o mundo continuaria firme em seu curso. Só que, mas, ai! eu não fui embora: durante algum tempo tapei os ouvidos para os ruídos que vinham da cabana junto ao celeiro onde guardam as ferramentas, depois, à noite, peguei uma lanterna e fui ver por mim mesmo”.

Torturavam. E agora, pensa o juiz, o que fazer?

Agora ele sabe… Sabe que sabe! Não dá para tapar os ouvidos.

Até a comadre de Moro, a deputada Zambelli, já disse que sabe que sabe o que Moro fez…!