O centro de São Paulo virou um campo de refugiados. O cenário é de carência absoluta. Gente pedindo comida, dormindo debaixo das marquises, andando a esmo. Com iluminação precária, a cidade está largada, cheirando mal.
Nada disso, porém, incomoda o prefeito Ricardo Nunes.
Ele tem outras prioridades. Uma delas é o que os aliados chamam de bala de Prata, capaz de garantir a reeleição e manter o mandatário no Palácio do Anhangabaú.
Essa cartada eleitoral Nunes foi buscar no campo da esquerda, na administração de Luiza Erundina: responde pelo nome de ‘tarifa zero’ e seu objetivo é oferecer gratuidade no transporte público da cidade.
“Ou fazemos ou Boulos ganha a eleição”, disse em entrevista recente o vereador Milton Leite, presidente da Câmara Municipal, aliado de Nunes e mandachuva local – comanda o orçamento municipal, os programas estratégicos, o prefeito, os parlamentares, a maioria dos secretários, as grandes obras, as nomeações para o Tribunal de Contas e outras coisas importantes.
É certo que São Paulo é uma cidade energética que aprendeu se virar sozinha, sem contar com governos.
Ricardo Nunes e Milton Leite são beneficiários dessa máxima. Movimentam bilhões em dinheiro público, definem o que vai ser feito, fazem o que querem e o povo nunca os viu mais gordos. Se entrarem num boteco no Butantã, relativamente perto de Santo Amaro, onde moram, é capaz de nem serem reconhecidos.
O presidente da Câmara é um sujeito simples, que começou entregando pães de casa em casa, cresceu no movimento popular e tem bom trânsito nas esferas de poder e no setor econômico.
A ele é atribuída a vitória de João Doria ao governo de São Paulo no 2o turno, em 2018.
Quando o barco estava quase naufragando na capital – os Institutos de pesquisa já apontavam a vitória de Márcio França -, Milton conseguiu estancar a sangria e garantiu o mínimo de apoios para dar ao gestor a chance de tirar a diferença nas cidades do interior.
Nunes chegou num patamar mais alto, mas não por méritos próprios.
Filho de uma assessora de Temer, foi indicado pelo golpista duas vezes: na primeira, ficou rico ao ganhar o comando do setor de controle de pragas do porto de Santos; na segunda, virou mandatário número 1 ao ser imposto como vice de Bruno Covas.
Fã de Bolsonaro e suas ideias – é apologista do Escola Sem Partido, farsa velha perpetrada e espalhada pela extrema-direita -, o prefeito cumpre o clichê religioso de ocasião neoliberal com requintes: nada para a área social e tapete vermelho aos grupos de interesse.
Foi a proximidade da eleição que trouxe a necessidade de se pensar em algum projeto de maior visibilidade e apelo popular.
Assim, a proposta idealizada por Lúcio Gregori vestiu como luva. Até com nome o programa do secretário dos Transportes do governo Erundina já veio.
Consiste, em síntese, no seguinte: aumentar o subsídio municipal e, aproveitando o direito constitucional de ir e vir, garantir a gratuidade das passagens.
Bancar o programa não é tão caro, considerados os números para 2023, que demandam investimentos de R$ 12 bilhões – rateados entre prefeitura (R$ 7 bilhões) e passageiros (R$ 5 bilhões).
Um clássico das gestões políticas é reservar dinheiro para desovar no fim dos mandatos.
Nesse quesito, Nunes fez a lição de casa. São Paulo dispõe de R$ 35 bilhões que não foram gastos em 2022. Uma gordura que pode perfeitamente ser usada na benesse eleitoral da vez.
“É simples implantar a tarifa zero?”, pergunta Lúcio Gregori, em conversa com o DCM. “É. É um programa viável e socialmente justo? Também é”.
Gregori virou personagem da vida brasileira, junto com outros profissionais que ocuparam o governo Erundina, por tomar decisões simples e focadas na justiça social. Na pasta dos Transportes, mudou o método de financiamento e revirou o sistema.
Antes dele, os empresários recebiam pelo número de passageiros transportados, fazendo com que os ônibus circulassem feitos latas de sardinha.
Após refazer os cálculos, a prefeitura começou a pagar por quilômetro rodado, estimulando a presença dos carros nas ruas.
“O passo seguinte era criar o que chamamos de tarifa zero, mas não foi possível por problemas políticos”, conta o ex-secretário.
A pauta de Gregori nunca saiu de cena nos movimentos de esquerda.
Até que acabou virando estopim para as manifestações de junho de 2013, com o Movimento Passe Livre, cuja bandeira acabou sequestrada pela extrema-direita, resultando depois na prisão ilegal de Lula, no golpe de Temer e, já no fundo do poço, no acesso do fascismo encarnado por Bolsonaro ao poder.
A gratuidade é algo inevitável a se considerar que nem o perueiro mais esperto da periferia respira sem dinheiro do tesouro.
Cidades do interior estão implantando o sistema com relativo sucesso. A mobilidade melhora, as pessoas passam a ter acesso a um bem essencial, com mais oferta vem a diminuição da circulação de carros, bicicletas ganham importância, muitos passam a caminhar entre os trechos e até o meio ambiente e o comércio agradecem.
O problema é a sua implantação numa cidade tão grande como São Paulo, onde a integração com trens e metrô, controlados pelo Estado, é inevitável para quem pretende circular pra valer.
Outros fatores observados pelos especialistas: é possível implantar o programa a toque de caixa? A prefeitura está se preparando de verdade ou a proposta é apenas um coelho na cartola que Ricardo Nunes tem para mostrar?
Para se ter ideia, apenas no primeiro governo Bruno Covas nomeou cinco secretários diferentes para comandar a área dos Transportes. Bruno suspendeu a gratuidade aos idosos, medida só agora restabelecida pela Justiça.
Ricardo Nunes, que ascendeu ao poder com a morte do tucano, também já fez várias trocas na pasta, atualmente comandada pelo vereador licenciado Ricardo Teixeira.
No Conselho Municipal de Transportes e Transito, que reúne membros da administração pública, dos operadores do transporte, sindicatos e da sociedade civil, num coletivo com 70 pessoas, o assunto não é tratado.
É com descaso que a administração municipal trata o CMTT: numa das reuniões, alguém pediu a opinião de Alexandre Tunkel, sub secretário responsável por abrir e conduzir os encontros online. Para constrangimento geral, o executivo deixou os membros no escuro, apos ligar a câmara de vídeo, abrir a reunião e ir cuidar da vida.
“Minha sensação é que não existe estudo sobre a implantação, dados, planilha de custos, nada”, disse ao DCM um membro do CMTT que pede anonimato. “Trata-se de uma boa ideia que pode dar errado por falta de planejamento e espírito público, afinal um programa dessa envergadura tem de ser debatido com a população. O que a prefeitura tem feito nessa direção? Até agora, nada”.
Ricardo Nunes ainda não cravou que vai implantar o sistema. Mas tece elogios e estimula outros prefeitos. Atualmente, 50 cidades em todos os estados já adotam a medida.
A contradição política em São Paulo se repete 10 anos após as mobilizações de 2013. Neste período, uma pauta de movimentos de esquerda acabou roubada pela extrema-direita e resultou num Brasil caído na sarjeta.
Guilherme Boulos, aliado de Erundina e adversário de Nunes em 2024, ressalta que já defendia o tarifa zero em 2020, na disputa com Bruno Covas.
Realça que o que não defende é o ‘bolsa ônibus’, numa crítica à relação de Ricardo Nunes com os Barões da catraca, como os empresários do setor são conhecidos na cidade.
Milton Leite defende a medida porque sabe que, sem mérito político e administrativo, Ricardo Nunes dificilmente vai alavancar a sua candidatura.
Nesta altura do campeonato, melhor roubar a ideia do outro que se manter quietinho, escondido.