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Temer quer criar república do lixo. Por Paulo Moreira Leite

O Brasil descendo a ladeira

Publicado no 247.

POR PAULO MOREIRA LEITE

Recém saído das catacumbas após o desembolso de R$ 13,4 bilhões que garantiram os votos de parlamentares para evitar uma investigação sobre corrupção passiva, Michel Temer abriu o verdadeiro jogo do golpe — instituir o regime parlamentarista e castrar a democracia de uma vez por todas.

“Acho que podemos pensar em parlamentarismo para 2018,” disse.”Não seria despropositado.”

Do ponto de vista da lógica em vigor na política do país após a deposição de Dilma Rousseff, não seria despropositado mesmo. Seria o capitulo final de um esforço coerente e ilimitado para retirar direitos dos brasileiros e transformar o país numa republiqueta de lixo.

Depois de bloquear o desenvolvimento econômico através da emenda dos gastos e transformar a questão social num caso de polícia, através do esvaziamento da CLT, o que se planeja com o parlamentarismo é impedir que o povo tenha a palavra final na definição dos destinos do país.

Vamos recordar. Pelo regime atual, o presidencialismo, reza o princípio sagrado pelo qual 1 pessoa = 1 voto. Não é perfeito, sabemos todos. Permitiu a eleição de desastres sem fim. Mas essa matemática quimicamente pura, sem desvios,  faz da corrida às urnas sob o presidencialismo um momento único na vida de um país. Nesse dia, e por um poucos instantes, o voto do trabalhador rural da Paraíba tem  o mesmo peso que o do gravatão do mercado financeiro da avenida Paulista. Todos os 100 milhões de brasileiros e brasileiras valem a mesma coisa. O resultado é fácil de prever.

A vontade da maioria se expressa de modo transparente e absoluto. Vale o que ela decidiu, sem intermediários, sem ponderações, sem filtros indevidos, sem atravessadores, bem remunerados ou quem sabe apenas bem intencionados — que são a marca do parlamentarismo.

Foi em função do voto somado 1 a 1, que os brasileiros puderam eleger, em raros momentos de sua história, governantes capazes de falar pela maioria e  contrariar os interesses daquele 1% que governa o país desde 1500.

Num caso clássico em que a forma determina o conteúdo, o sistema de governo cumpre um papel essencial para isso. Não é de surpreender, portanto, o que nos dois plebiscitos realizados sobre o assunto, o presidencialismo foi vitorioso por margens avassaladoras: 4 para 1 em 1963; 2 contra 1 em 1993.

Mesmo imaginando, por hipótese, que o Congresso brasileiro fosse formado por freiras carmelitas, não dá para cogitar a escolha de Getúlio Vargas — ou de Lula, ou Dilma — pelo voto indireto de Senadores e Deputados. Num fenômeno universal, o Congresso existe, justamente, para conciliar os contrários e dar voz à minorias inferiorizadas do ponto de vista da maioria da população. Sua função não é abrir caminho para a mudança, mas promover a estabilidade — um eufemismo para atraso e conservadorismo.

O debate parlamentarista surge e desaparece no país em momentos precisos, quando serve de barreira contra  governos considerados inconvenientes pelos donos do poder e do dinheiro, o que já diz muito sobre o caráter pequeno, medíocre, de sua versão nacional.

Em 1962, o parlamentarismo foi uma condição militar para autorizar a posse de João Goulart na presidência da República. Era uma forma de neutralizar, pelo Congresso — sempre ele! — um presidente de tradição trabalhista. Em 2017, o parlamentarismo de Temer é uma versão institucional, escancarada, de neutralizar Lula — caso nem Sérgio Moro nem o TRF-4 possam dar conta do serviço.

O plano é assim: caso Lula consiga disputar a eleição e se eleger, será uma Rainha da Inglaterra. Caso não ocorra nenhuma coisa nem outra, seus sucessores — mesmo os melhores — serão estadistas de mãos e pés bem amarrados pelos operadores do parlamento.

Não é uma questão brasileira. Desde o século XVIII, quando, nas primeiras democracias, o povo emergiu como protagonista principal da vida política, tomando nas rédeas o destino de países e nações, o parlamentarismo tornou-se o instrumento principal das elites e variadas versões das aristocracias para resistir as mudanças. Era sua grande trincheira institucional, pois ali é possível preservar interesses e pontos de vista  que não tem base social, no número de cidadãos que apoiam, mas na tradição e na riqueza.

Não vamos ficar na Europa. Basta recordar um caso recente do país. Em 1988, uma Constituinte nascida sob um impulso progressista na luta contra a ditadura, no momento em que foi escolhida pela população, acabou esvaziada e esterilizada, em capítulos fundamentais — sobre a propriedade da terra, os meios de comunicação, o controle do mercado financeiro, a punição a torturadores — pelo jogo parlamentar que estudiosos muito sérios já definiram como cretinismo.

Reconstruindo a história das monarquias parlamentares européias, o historiador Arno Meyer escreveu, em A Força da Tradição, um pequeno tratado definitivo.

Ali se demonstra, por A + B, que, unindo a nobreza e a burguesia, o parlamentarismo construiu a principal barreira institucional para mudanças que interessavam a maioria de plebeus e deserdados. Na maioria dos casos, mudanças urgentes e necessárias foram atrasadas — ou simplesmente impedidas — por várias gerações.

Não é nem um pouco surpreendente que Michel Temer tenha tido o descaramento de assumir essa bandeira após a votação de quarta-feira. Alguma dúvida?

Diario do Centro do Mundo

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