Thomas Piketty: “Para entender o que aconteceu no Capitólio, é urgente voltar à história”

Atualizado em 13 de janeiro de 2021 às 12:41
Invasão do Capitólio. Foto: Win McNamee/Getty Images

Originalmente publicado em INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS

Os acontecimentos de 6 de janeiro em Washington mostram que um “conflito etno-racial sem saída” ameaça os Estados Unidos, argumenta o economista em sua coluna no “Le Monde“. O desafio dos democratas que chegarão agora ao poder é reconquistar o voto popular, seja qual for a sua origem.

O artigo é de Thomas Piketty, diretor de estudos da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales e professor da Ecole d’économie de Paris, publicado por Le Monde e reproduzido por Carta Maior, 11-01-2021. A tradução é de Aluisio Schumacher.

Eis o artigo. 

Após a invasão do Capitólio, o mundo perplexo se pergunta como o país que há muito se apresenta como o líder do mundo “livre” pode decair tanto. Para entender o que aconteceu, é urgente sair dos mitos e da idolatria e voltar à história. Na realidade, a república estadounidense é atravessada desde o início por fragilidades, violências e desigualdades consideráveis.

Emblema do Sul escravagista durante a guerra civil de 1861-1865, a bandeira confederada empunhada há poucos dias por desordeiros no seio do Parlamento Federal não estava lá por acaso. Remete a conflitos muito graves que devem ser enfrentados.

sistema escravista desempenhou um papel central no desenvolvimento dos Estados Unidos, assim como no do capitalismo industrial ocidental como um todo. Dos quinze presidentes que se sucederam até a eleição de Lincoln em 1860, nada menos que onze eram proprietários de escravos, incluindo Washington e Jefferson, ambos nativos da Virgínia, que em 1790 tinha 750.000 habitantes (com 40 % de escravos), ou o equivalente à população combinada dos dois estados mais populosos do norte (Pensilvânia e Massachusetts).

Após a revolta de 1791 em São Domingos (joia colonial francesa e a primeira concentração de escravos no mundo atlântico da época [Haiti, desde 1804]), o Sul dos Estados Unidos tornou-se o coração mundial da economia de plantation, experimentando expansão acelerada. O número de escravos quadruplica entre 1800 e 1860; a produção de algodão aumenta dez vezes e alimenta a indústria têxtil europeia. Mas o Nordeste e especialmente o Centro-Oeste (de onde Lincoln é) desenvolvem-se ainda mais rapidamente. Apoiam-se-se em outro modelo econômico, baseado na colonização de terras do Oeste e no trabalho livre, e querem impedir a expansão da escravidão nos novos territórios.

600.000 mortos

Após sua vitória em 1860, o republicano Lincoln estava disposto a negociar um fim pacífico e gradual para os escravistas, com indenização para os proprietários, como aconteceu por ocasião das abolições britânica e francesa de 1833 e 1848. Mas os sulistas preferiram jogar a carta da secessão, como parte dos colonos brancos da África do Sul e da Argélia no século XX, na tentativa de preservar seu mundo. Os nortistas recusaram a separação e a guerra começou em 1861.

Quatro anos depois, e após 600.000 mortes (tanto quanto o total acumulado de todos os outros conflitos nos o quais o país participou, incluindo as guerras mundiais, CoréiaVietnã e Iraque), o conflito termina com a rendição dos exércitos confederados em maio de 1865.

Mas os nortistas não acham que os negros estão prontos para se tornarem cidadãos, muito menos proprietários, e deixam os brancos retomarem o controle do Sul e imporem um sistema estrito de segregação racial, que lhes permitirá manter o poder por mais um século, até 1965.

Nesse ínterim, os Estados Unidos se tornaram a primeira potência militar do planeta e conseguiram por fim ao ciclo de autodestruição nacionalista e genocida entre as potências coloniais europeias, entre 1914 e 1945. Os democratas, que eram o partido da escravidão, conseguiram se tornar o do New Deal. Impulsionados pela concorrência comunista e pela mobilização afro-americana, eles concederam direitos civis, sem reparações.

Uma grande reversão da aliança

Mas, desde 1968 o republicano Nixon recupera o voto branco sulista ao denunciar a generosidade social que os democratas concederiam aos negros como clientelismo (um pouco como a direita francesa suspeita que a esquerda é islâmica e esquerdista quando menciona a discriminação antimuçulmana).

Ocorre então uma grande reversão da aliança, amplificada por Reagan em 1980 e depois por Trump em 2016. Desde 1964, os republicanos conquistam uma clara maioria do voto branco em todas as eleições presidenciais, enquanto os democratas sempre reunem 90 % do voto negro e 60% -70% do voto latino.

Enquanto isso, a participação dos brancos no eleitorado diminuiu constantemente, caindo de 89% em 1972 para 70% em 2016 e 67% em 2020 (em comparação com 12% para negros e 21% para latinos e outras minorias), o que alimenta a radicalização dos trumpistas no Capitólio e ameaça afundar a República dos Estados Unidos em um conflito étnico-racial sem saída.

O que concluir de tudo isso? De acordo com uma leitura pessimista, apoiada por boa parte dos grupos mais diplomados que votam doravante nos democratas – o que permite que os republicanos agora se apresentem como anti-elites, mesmo que continuem a mobilizar grande parte da elite empresarial, já que não conseguem seduzir a elite intelectual – os eleitores republicanos seriam “deploráveis” e irrecuperáveis. As administrações democráticas teriam feito de tudo para melhorar a situação dos mais desfavorecidos, mas o racismo e a agressividade das classes populares brancas os impediriam de reconhecê-lo.

O problema é que essa visão deixa pouco espaço para uma solução democrática. Uma abordagem mais otimista da natureza humana pode ser a seguinte. Durante séculos, pessoas de diferentes origens étnico-raciais viveram sem contato umas com as outras a não ser por meio de dominações militares e coloniais. O fato delas recentemente conviverem dentro das mesmas comunidades políticas constitui um importante progresso civilizacional. Mas continua a gerar preconceitos e explorações que só podem ser superados com mais democracia e igualdade.

Se os democratas querem reconquistar o voto popular, independentemente de sua origem, então mais deve ser feito em termos de justiça social e redistribuição. A estrada será longa e árdua. Mais uma razão para começar agora.